segunda-feira, setembro 22, 2008

Esboço para um Romance Natimorto

Maint joyal dort enseveli
Dans les ténèbres et l’oubli,
Bien loin des pioches et des sondes;

Mainte fleur épanche à regret
Son parfum doux comme un secret
Dans les solitudes profondes.

BAUDELAIRE


CENA I

Um okapi flutua no centro do hall seguido por uma imensa cauda flamejante. O crânio azul-esverdeado gira em rotações inquantificáveis e torce e estrangula o pescoço. Escalando o ar como uma máquina desgovernada. Escondido no fundo remoto e cego onde um cálice gigantesco e borbulhante mergulha em vapores. A grande neblina se espalha. E uns caras índios-astecas-maometanos, totalmente doidos tipo Isaac Lee, inalam a fumaça vinda de um narguillé.
... Encenando a Dança dos Camponeses, de Rubens! Os seres amalgamados em união cósmica. Já eram, na época, as mulheres a força motriz da humanidade. Latem, latem! A flauta ressoa – em marcha, em marcha... Girando. Hesitam sobre o chão movediço que engole os seus pés e avança sobre suas tíbias. L’amour! A grande valsa da eternidade afogando os seres.
O enredo de um filme pornográfico desfila na camada visível da Mente. A imagem da História é a fornicação. Ininterruptamente eras penetram eras. Não é a Vida uma puta insaciável (ou o Tempo um pênis colossal em seu pleno exercício imemorial e eterno)? Exilado no porão do Tempo Napoleão está fodendo Vercingetorix.
... Sonhando com a calcinha de renda vermelha-rosada-crua que paira sobre a altura dos joelhos dela. A imagem de seu sexo desnudo e resplandecente descola vagarosamente do meu cérebro e sucumbe, vaza e escoa entre a corrente nervosa, umedecida e espremida nos meus testículos, arfando, gemendo, uivando, ganindo, como uma locomotiva perdida engolindo o abismo. E, de súbito, o Tempo morre, os continentes desaparecem, as florestas são engolidas, os livros queimam, e tudo, completamente tudo, todas as coisas perecem e caem fulminantemente no Nada.
... Ísis dançante através de um vaso cheio d’água, deslizando como uma lesma na câmara ocular, e seus olhinhos dançam e vibram. E, no extremo, isto é uma despedida; é um último olhar desesperado e triste; uma elegia velha e mofada. Aos poucos, como uma música distante, içando-se sobre círculos de fumaça na luz mortiça, ela ressurge com o olhar mais misterioso e febril e mortificado que eu jamais vi, como os olhos fúnebres e tristonhos de um corcel insepulto. E era um infindável inverno ártico, nos dias mais frios e congelantes que já existiram sobre a terra, vivendo como uma enguia sob a cova fria coberta por uma  camada fina de gelo como um espelho. Ísis, doce Ísis! Um suspiro morre lentamente no passado como a fumaça do cigarro... e sorvendo seu suave perfume inolvidável.

***

Ah, Lua! aspiração imutável do poeta. Eleva-se sobre densa névoa. Canta e bóia sob o disco cintilante pendurado no teto do céu. Ilumina os seios fartos da negra. É impossível não lhe dirigir uma canção! Todo o homem dedica uma vez na vida um poema à Lua. Um poema sublime à negra que cresce como um cancro à parede firme do membro. Um poema sifilítico, no sentido profundo do termo. Um poema amargo e funesto. Um poema tétrico. Um poema autocanibalesco e suicida.
O aracnídeo negro-aveludado escala o muro do presente erguido sobre o tapete da Miséria. Além do limite, numa janela sem fim, contempla o futuro com seu periscópio vítreo. Em camadas finas surgem os espectros do Tempo, mais sólidos e reais, e se desfazem e desfiam como barbantes de plástico até completamente desaparecer.
Na madrugada, com uma fina luz, marchando em florestas à beira da Lagoa. Hey, Gio! O suave conhaque que nos espera sobre uma mesa velha e isolada. Eis o derradeiro veneno, o derradeiro néctar. Uma lamparina acesa, entre os livros comidos pelas traças, e as paredes de madeira despedaçadas e quentes nos guardam o conforto do futuro, a enorme catarata do crepúsculo.

***

O Homem desmaiado e nu sobre os ladrilhos gelados, e sozinho igual a um cadáver podre nadando no próprio sangue espesso como a noite, disfarçado na escuridão inviolável, imóvel e silencioso, mergulhado no agradável e caótico lago azul-madrepérola do tédio. “Está tudo escrito! Nada há mais a escrever!”.
Estou em cima do alçapão de barro assentado sobre a loucura. Tão inerte quanto uma estátua. E as luzes estão se apagando...

***

Schlap! Schlap! Um dálmata que havia adormecido junto ao meu corpo.
“Outono já”! (Mandy com O Homem Revoltado, de Camus)

***
“Eles divinizaram a blasfêmia!”. As palavras se derramaram sobre o meu cérebro como gotas de ácido sulfúrico. Eu nunca escreveria uma frase como esta. Quando imaginava escrever tratados aduladores sobre os supostos poetas malditos que infernizaram a eufórica burguesia dos séculos anteriores, muitos adágios surgiram na minha mente, e toda a espécie de ofensas e provocações, mas jamais me ocorreu que estes amaldiçoados formavam um tipo raro de endeusadores. Eu previa me tornar um destes flautistas na velhice assim que deixasse de tomar conhaque e pensar em vaginas. Eles transcenderam a calúnia. Só pode ser um Deus o condenado que compõe sonatas! - e tais poetas compuseram músicas perfeitas, e harmoniosas, sobre seu cadafalso; eles encenaram peças diabólicas, transfigurados e dopados, para transmitir a beleza. A respeito de nossos dias, eu penso que a indústria transformou a beleza em uma matéria suburbana ou ultraurbana [eis a opinião de um condenado]. Quem não pode consumir a beleza que circula na esfera burguesa, e quem não pode conceber a beleza reproduzida sob o signo da uniformidade, da repetição e da previsibilidade, e quem não pode respirar o ar do método da ciência natural, refugia-se no crime. Empresta ao crime um nome sagrado. Os comportamentos marginais, agressivos, criminosos, anti-sociais, de pura aniquilação, são cobertos de conteúdo artístico. Os antigos valores nobres de ordem e simetria tornaram-se obsoletos e repugnantes – e hostis à beleza moderna. A atmosfera viciada, depravada, torpe, devassa e profana que me circunda, e envolve toda a massa de perdedores, justifica porque o ladrão é o meu herói predileto neste Navio dos Loucos que se tornou nosso tempo. Enquanto os nossos próceres infames copulam bêbados e disputam um faisão ilusório suspenso no anzol da Morte, o verdadeiro herói periférico e imoral lhes toma as últimas migalhas sobre sua pobre balsa flutuante, e naufraga sozinho e delirante levando nas mãos os últimos resquícios com os quais é possível sobreviver com dignidade. Sim, hoje todos morremos solitários e melancólicos no fundo de um poço individual, deslizando no interior de um longuíssimo cano cilíndrico como num escorregador, experimentando um coquetel interminável de drogas mortíferas. Eu mesmo sinto que estou cruzando um daqueles túneis de esgotos fétidos, que estou em uma parte subterrânea de Paris ou de Londres, mas, ao mesmo tempo, também estou em um recanto além delas, abaixo delas – talvez como um rato?...

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