terça-feira, março 17, 2009

[ísis]

eu estava sentado em um caminho de madeira refrescando os pés na água, olhando as gaivotas planarem em vôos rasantes sobre a lagoa calma e imóvel, e pensando por que diabos estava eu ali tão longe e tão remotamente só. enxuguei os pés para calçar os sapatos e levantei esfregando as minhas calças que estavam imundas e ásperas. era uma calça jeans de um azul claro velha e gasta. o chão estava totalmente salpicado de areia e formava uma enseada meio inverossímil em plena margem da rua e lhe cingia um contorno delicadamente fantástico. errei para cima e para baixo um pouco perdido e estonteado à procura de um bar no qual pudesse permanecer anônimo e sem ser perturbado por ninguém. escolhi um bar amarelo com uma mesinha vaga no fundo que, a despeito de ser bem movimentado, jazia completamente escuro e apagado entre uma série de outros bares deprimentes com letreiros em gás neon. suas paredes ainda cheiravam a tinta fresca. percorri o cardápio com os olhos, entretanto, estava alheio e sem fome e só desejava beber um bom trago. deixei o pensamento voar longe e desconectar-se da realidade; os braços pendiam, caídos, mortos e pesados sobre a mesa dura e fria; o olhar fixo e opaco, concentrando num ponto longínqüo. o gio veio de bicicleta. logo, ficamos ébrios e meio deprimidos. refletimos melancolicamente acerca de nossas vidas inúteis; sobre o destino ridículo e mesmo incompreensível que tivemos, em que fomos ultrapassados e superados, em todos os quesitos, por seres que, segundo nosso juízo, eram ínfimos e repugnantes, cujo sucesso era obra da boa consciência da sociedade, um tipo de prêmio à moralidade. nossos sonhos tinham morrido! sim, nos convertemos em párias e canalhas, desprezando e cuspindo na cara da sociedade - num gênero só para raros.
a noite desceu por completo. tínhamos que voltar para a costa e o próximo barco era o último. andamos até o barco enfrentando as luzes esbranquiçadas dos carros e, com medo de perdê-lo, chegamos uma hora adiantados. sob os postes, com uma sonolenta luz alaranjada, erguia-se o píer. lá havia toda a sorte imaginável de desajustados esperando para serem transportados para casa: trabalhadores fedendo à peixe; mulheres levando no colo criancinhas pálidas e inquietas, jovens selvagens loucos para vomitar, e velhos com o tédio colado na fronte, etc. exalava um fétido e insuportável odor de algas. a superfície da água parecia grossa e pardacenta. dane-se! era o único meio de retornarmos. a alternativa restante consistia em caminhar quatro quilômetros por uma vereda aberta na margem lateral da lagoa (o que, por evidência, rechaçamos de imediato). assim, o gio encostou a bicicleta em um muro e adormeceu. eu pedi para uma senhora negra que me parecia tristemente simpática e humilde para nos avisar no momento em que o barco fosse zarpar. enquanto isso, tive um excelente sono no chão gelado. a esta altura, o calor havia se dissipado e o ar era macio e azulado. a senhora negra nos alertou e subimos ao teto do barco onde se amarravam as bicicletas. abaixo, sob o teto ou na borda do barco, todos se espremiam sentados como pulgas. a noite estava incrivelmente agradável e sem nuvens. o reflexo da lua boiava na água tênue e plácida da lagoa delimitando a área observável na escuridão. na orla havia raras casas penetrando o breu espesso com uma pequena lâmpada opaca na floresta densa. sonhávamos olhando pro céu frio, deitados com as costas no teto de madeira do barco, quase a levitar suspensos por uma cama de fumaça, inalando um aroma de incenso que boiava em círculos, expelidos por turíbulos de prata que oscilavam e balouçavam-se sobre os nossos crânios, em um silêncio pavoroso unicamente interrompido pelo choque constante das ondas. e posso jurar que a ísis estava lá, em algum lugar do céu, na noite estrelada, como um arcanjo iluminado derramando seu amor e sua graça em cascatas que jorravam de dentro dos seus olhos e desciam direto ao nosso pobre chão rachado. então subitamente o gio saltou produzindo um estrondo no assoalho e com uma manobra brusca fez o barco parar. e, quando descemos no posto 8, ermo e desolado, com um sentimento estranho e inconcebível de solidão e plenitude, na rampa do trapiche, ou monte acima, no barro e na trilha fechada, eu ainda sentia que ísis estava ali sussurrando e lambendo o meu ouvido com seu hálito doce e perfumado.

sexta-feira, março 13, 2009

[avant la haine]

- Dans Paris [Em Paris], do diretor Christophe Honoré. -


isto é ao que eu chamo de Arte!... a raras obras posso classificar o filme como pretexto à uma só cena; como um contexto pálido composto para o apogeu comovente condensado em um intervalo. uma escalada aos céus! não há como não arrepiar os pêlos! - e não soltar uma lágrima cálida. eis um filme que me surgiu ao acaso: e para o qual permaneci totalmente despreparado. uma fortuna aleatória! quando rumei hoje cedo para o depósito, um pouco triste e melancólico, sentado em um ônibus sujo e recitando mantras, parecia ver alguém através dos vidros empoeirados, do outro lado da linha de telefone imaginária, sob os delicados vapores da manhã encobrindo o sol pungente, diluindo as nuvens baixas, recordando essas imagens inexprimíveis que parecem espargir sonhos fumegantes, embriagar a mente com gim - a arte é a bela petrificação da alma -, e que têm o mesmo som ao de uma noite em que minhas lágrimas frias caíam em um copo cheio d'água na penumbra. só o amor possui tal esperança sombria: que subtrai o horror inevitável pelo sentimento sublime; só o amor é esse puro heroísmo ante a tragédia, e antepõe a paixão ao inelutável, levando no dorso a bela morte. eu sussurava non, je t'embrasse et ça passe... - perdido no zumbido dos automóveis - e um murmúrio morria no silêncio do ar tépido (como um trem penetrando um túnel).