terça-feira, setembro 23, 2008

[o pessimismo do Norte; diálogo imaginário]

Mandy analisava tudo atentamente, com sua sobrancelha arqueada, de dentro de seu frigorífico mental. Evidentemente, sob a sua temperatura ártica, eu sabia que ela era portadora de uma verdade e que, logicamente, minha elucubrações inflamadas não se sustentariam ao seu sopro de gelo: mas eu tinha o Sonho! Este fato lhe aterrorizava, porque, durante a sua vida inteira, Mandy se ocupou para que os sonhos infantis e inocentes da humanidade se dissipassem. Ela trabalhava para o engrandecimento moral do Homem – e tal caminho, segundo ela, só poderia ser alcançado através da repressão ao elemento individualista, desagregador e sonhador do homem. Possuía uma espécie de mantra interior: “ao Norte habita a Verdade! avante para o Norte, soldados da Razão!”.
Embora o Norte esteja por toda a parte, inconcluso e precário, disfarçado entre o Caos universal, sob a bandeira da Lei e da Ordem, o Sul permanece pulsante e latente, nos escaninhos de nosso desejo. Entretanto o Sul, apesar de representar uma tentação constante (talvez indestrutível!), é um abismo ao qual poucos homens sucumbem. Outrora, lembro, eu marchei junto àquele exército pálido seguindo o Norte; porém, enquanto todos dormiam como pedras, eu lutava contra a minha alma desertora. E os sonhos não têm pescoço, não se pode estrangulá-los! O sonho é impalpável e etéreo, não pode ser liquidado ou extraído da mente de um homem como se procede, por exemplo, com relação a um tumor. Eu estava cansado de dormir sobre o chão frio, sob o cobertor de neve da Razão, sonhando com meu cérebro de gelo. ‘Foda-se o futuro! Foda-se o imenso sol que se levanta no horizonte inalcançável! Prefiro ser um extravagante vagando entre as nuvens a um mendigo na terra!’. Por ventura me perguntarão ‘para onde seguir?’: ora, para qualquer lugar, para o fundo do Inferno, desde que não seja para frente e contanto que não marchemos mais. Não existe mais uma só causa que valha a nossa marcha! Sinto no rosto o vento morno do Sul, penetrando-me através de meus poros e me carregando embriagado nos seus braços invisíveis; posso espiar Helena dançando seminua na clareira de uma floresta; contemplar Ísis fumando um cigarro numa varanda de Floripa (sorvendo aquele perfume inesquecível!) ou ouvir Nietzsche declamando versos na baía de Nápoles numa tarde chuvosa de verão:

O Mediterrâneo jaz num sono branco
A não ser por uma única vela púrpura.
Rochedo, figueira, torre e porto mantêm
A sua inocência pagã; as ovelhas
Balindo nesta paz que nada quebra.
Cansado de todo o Norte estava eu
E do seu lento e metódico passo.
Pedi ao vento que me elevasse
E aprendi com todas as aves a voar
E para Sul sobre o oceano me apressei.


E, por alguns instantes, permaneci imerso nestes pensamentos. Embora a atração irresistível dos ventos do Sul tenha me suspendido os neurônios por certo tempo, Mandy ainda estava postada no centro do hall, ereta e concentrada, expressando com o canto da boca o seu descontentamento e o quanto zombava do meu ar sonhador. Eu percebi que a minha aptidão mongol para devastar não encontrava consentimento em seus olhos, que Mandy personificava o totem da velha sociedade (um imenso espantalho com o rosto da Morte!). Sob sua ótica, de seu observatório nortista, eu havia me desligado à veneração do templo, corrompido os ícones sagrados, dissolvido os monumentos simbólicos e renegado à minha descendência primordial: era um filho bastardo, um desviado. Ela pensava em silêncio: “oh, pobre órfão!”. Via-se na penosa e dilacerante obrigação do juiz e do sacerdote de nosso tempo. “Afinal somos todos irmãos! Gostaria de abrigá-los todos sob o calor de meus braços, mas definitivamente não posso. É a Lei! A Lei sob a qual todos estamos subjugados, a qual todos devemos respeitar – e com o máximo de zelo. Não pense que é fácil julgá-los! Mas não sou surda ao dever... Saiam, saiam daqui, seus corvos assassinos!”. Isto transparecia em seu semblante, simultaneamente severo e duro, tão pesado quanto deve ser o Norte, porém, misturado a uma compaixão indolente, que reconhece o quão impotente é perante as coações do Norte. Todavia, ela despertou de seu silêncio complacente e austero, recuperando a expressão que a férrea mão da Necessidade supostamente exigia dela – com uma voz rouca e aveludada, saída de uma gruta escondida no espaço:
“Era o que eu imaginava: sua descrição do Poeta corresponde a de um vagabundo luminoso! Deus, como você é previsível (e asqueroso)! Você despreza o trabalho, o raciocínio regrado e a responsabilidade coletiva; rejeita a possibilidade do poeta, como um camelo, carregar algo nos ombros, é avesso a todo o tipo de opressão; não vê uma importância social no ofício do poeta – ao invés disso, você determina unicamente que ele fique distanciado da massa, protegido, isolado em um apartamento de marfim imaginário. E ainda assim considera-se moderno! É por isso que você é uma nulidade! Considera-se um poeta – e verdadeiramente o é, na sua concepção da poesia. Porque, na sua concepção de poesia, o poeta está liberado de escrever, está autorizado a se calar. Não é incrível? Eu sinceramente acredito que tudo o que você disse é muito belo, mas é estúpido e não faz o mínimo sentido. Entre as suas proezas não consta razoabilidade. Você defende uma vertente de anarquismo que idolatra o ócio e a preguiça, e não a Poesia! Está no século errado ou será que é cego - e não pode remover os seus antolhos? Não é possível que não veja em toda a volta os benefícios oriundos do trabalho organizado, o triunfo da Razão em cada vitória de nossa civilização... Imagine que sua representação do poeta se generalizasse: não desabaríamos no Caos? Sim, pois posso prever, nessa condição, homens e mulheres lutando uns contra os outros dentro de uma bacia, no fundo de uma cratera, trocando ofensas e matando-se mutuamente pelos bens mais comuns e pelas migalhas mais desprezíveis. É a sua visão do Paraíso! É o seu Natal sobre a Terra!”.
Eis revelado o pessimismo sobre o homem! – a propósito, subjacente à toda consciência burguesa do mundo. O ideal burguês que ordena: ‘Não deixai o homem livre! Somos todos responsáveis pela segurança e preservação do coletivo!' Cada um deve impedir que se materialize a máxima bellum omnium contra omnes. O homem solitário e livre, que dança nos sonhos dos poetas, é um verdadeiro lobo – o qual devemos exterminar! Temos a missão, como rebanho, de evitar a formação destes predadores. O contrato está em jogo. Nada pode ser mais repugnante, para quem vem do Sul, do que tais fórmulas mortais, tais premonições negras e doentias proclamadas com ares catilinários.

Nenhum comentário: