segunda-feira, setembro 22, 2008

[espasmo]

eu soube que precisava relatar o meu passado, que eu não possuía talento para criar estórias, que o relato autobiográfico era um desejo profundo do meu inconsciente, que era impossível, para mim, escrever sobre os movimentos abolicionistas e golpes militares e guerras de libertação, e que, na História, os mártires, os santos, os rebeldes e todos os heróis vítimas de injustiças e que morreram em vão existem no nosso tempo, perdurando em inércia, que estão caindo como moscas, sofrendo de diabetes e se drogando e cuspindo enormes pedaços de seus pulmões no chão frio e duro, morrendo de doenças hepáticas e tendo overdoses irreversíveis de cocaína, e que, portanto, é difícil de compreender, mas os grandes homens ainda vivem entre nós e estão se borrando nas calças em hospitais e manicômios, vomitando nos fundos dos botecos, em banheiros sujos e fétidos, e vivendo isolados e deprimidos como vira-latas magros, com os corações transformados em um tubérculo mortal, e que eles, os nossos heróis, não estão só petrificados nos parques, nos monumentos e nas igrejas, sendo alvos de excrementos de pássaros; sim, todos os gênios estão tomando cocô de pomba nos ombros e pisando em merda de cachorro, e estamos desolados porque as peças fabulosas que eles criam, seus sonhos de Shakespeare, se desenrolam na mente, porque a criação permite que o gênio mova o mundo com o seu intelecto, e estamos afundando sozinhos num mundo individual e egoísta e falecendo sem criar coisa alguma, vivendo num mundo ilusório que não legará absolutamente nada às gerações futuras. e, afinal, o que é a criação? eu sinto que é estar em cima de um muro e rodeado de nada e que criar é antes um ato de coragem e loucura do que de composição, não é como pegar barro e ficar amassando. arremessar-se e voar, sem asas, sobre o nada imenso, numa queda constante e interminável, desabando para o fundo de um abismo, incognoscível e infinito... sim, uma viagem! e o passado também é um vazio que não deixa ruínas. os escombros são já a forma do presente. eu preciso curtir o meu passado, sei lá, como uma viagem de ácido e não só fotografá-lo com olhos de peixe morto. e por que os nossos deuses pirados não escrevem? por que justamente eu que tenho um cérebro de repolho preciso escrever? porque eles estão todos fascinados com suas fossas, lá sozinhos, renunciando, envoltos com suas neuroses psicanalíticas, deprimidos com tudo tipo Holden Caulfield, porque, desde Freud, alguém razoavelmente inteligente é fissurado e obcecado e viciado em análise e auto-análise, e tudo vira matéria de erudição e conhecimento e nada, definitivamente nada, se transforma em vida. eu não quero escrever mais um romance pequeno-burguês-entediado. a nossa classe social está coberta de tédio e desolação, e a saída para ela se esconde na miséria e na privação. só a feiúra é capaz de nos abalar. tudo o que é feio é ovacionado. tudo o que é ridículo e simples é aplaudido. a beleza agora fede. o apogeu do capitalismo nos tornou o belo insuportável. eu cansei da paz. tudo dá sono e vontade de beber. nunca mais existirá aquela satisfação transbordante da nobreza. nada agora merece reverência. não há no mundo algo similar a uma arte imperial. nenhum homem a quem se prostrar, nenhuma obra, nenhum ideal! precisamos escalar os fatos como alpinistas. quem não está cercado de montes? quem se encontra só com o vento entre as cordilheiras? quem pode enxergar algo lá do alto? cada indivíduo percorre a vida com uma bicicleta imaginária cortando o espaço. flutuando no vácuo. em frente! em frente! como se o tempo não existisse. como Henry Miller no Brooklyn observando o outono despencar das árvores como páginas de calendário. eis um sonho fabuloso! dançando com os cães como os mendigos loucos de Amsterdã. dormindo na margem do Sena, sob as intempéries e as rajadas de ventos inclementes. contemplando Paris fervilhar ao fundo, boiando sobre tubos de néon coloridos que explodem feito estrelas cintilantes... os nossos intelectuais passeiam meio ébrios diante dos cabarets luxuosos, nos largos bulevares que parecem levar ao paraíso. arquitetando uma idéia de vida extra-terrena, talvez sobreterrena. o intelecto burguês! mergulhado na lama e na podridão. mais miserável que um piolho sujo. assolado pela depressão congênita. a plenitude material se revelou diabólica. nosso espírito ocidental se assemelha àquele viajante que sonhando atravessar os continentes tocava o mapa com os dedos das mãos. e quão imprecisa é nossa cartografia! ignoramos a escala louca da mente. no fim das contas, estamos sós, dedilhando primitivamente os nossos instrumentos, acreditando erroneamente dominá-los, que neles somos instruídos e providos de técnica e providos de virtuosismo. não somos virtuoses, e nem sequer somos eruditos. não temos ciência alguma das cordas que vibram em nós. nós, os desafinados! não compreendemos nada sobre o que ocorre no íntimo do nosso corpo e da nossa alma. tudo o que temos agora é um punhado de músculos e nervos e ossos. inversamente ao que cremos, nós, os vaidosos, nossa razão é superficial. nosso conhecimento das coisas é ilusório e decepcionante. conhecemos os nossos órgãos interiores e a finalidade de nossas ações como um caixa de música entende de Beethoven, e o fato de executarmos uma sinfonia, de darmos forma e andamento nela, não significa que compreendemos o seu objetivo, ou que seja obrigatório que venhamos a conhecê-lo no futuro. tudo o que fazemos se restringe a descrever em minúcias e em fórmulas os processos. não suspeitamos, em absoluto, o Quê anima. um sonho miserável e sujo é preferível à nossa ciência. eis o gênio carregando sua casa nas costas. o desespero oriundo da pobreza espiritual... é o pressuposto único da miséria material que acompanha ao gênio asceta. o sábio detém em si todas as chaves e pode abrir a porta que desejar. veja-se, por exemplo, os avanços superiores de Maquiavel. ele só não subiu mais porque já enxergava o suficiente de sua posição. as paisagens que nos descreveu são amplas e grandiosas, e tudo o que se estende abaixo de si parece estar localizado em um abismo muito longínquo. naquele tempo havia esperança. hoje os homens valorosos ambicionam o chão. deitam-se na sarjeta como porcos. todo o nosso ouro está imiscuído à lama e ao lodo. nossos gênios peregrinam através da massa urbana entoando hinos franciscanos, exaltando a pobreza e elevando os indigentes ao trono universal. tanto a beleza como os valores foram corrompidos. a missão da igreja expirou. os bispos estão nadando em dinheiro. a moeda é o novo corpo de Cristo. a idéia do catolicismo fracassou. nada temos mais a oferecer senão os ossos. tudo o que continha vida foi sacrificado. a natureza santa foi dissecada. por tudo que é sagrado, temos que acabar logo com deus! os deuses foram uma invenção fascinante. no teatro da História, os deuses representaram o apogeu sísmico do coro metafísico que flutua no firmamento como uma sonata eterna que envolve o plano do Homem. um triunfo da Arte que só poderá ser comparado à sua derrocada. a idéia cumpriu o seu ciclo. os povos se excederam com a piada, e hoje a idéia se encontra demasiadamente séria. a imagem do novo paraíso é como “a noite estrelada no Ródano”, do deus louco Van Gogh. rompe com a nossa visão calcificada do mundo. eu vejo ali o prenúncio do apocalipse de nossa época. e um poeta cantando: “brotam no firmamento dezenas de medianos sóis. são sóis amarelos. como fogos de artifício sobre uma cortina sombria”. e o retrato do abismo do mundo é uma cidade ardendo sob a órbita incrível dos sóis, e os edifícios queimando como imensas labaredas e refletindo no denso oceano os fogos embaçados e deformados pela dança frenética das ondas, e uma série de colunas incandescentes serpenteando numa chapa negra de água, e mesmo que fixos no céu, os sóis contraindo-se como um acordeão velho alucinado, e num intervalo do céu negro, revela-se um demônio gigante no horizonte longínquo da tempestade, o mar funde-se à terra até não se distinguir o imenso plano líquido do apertado corredor de areia que ondula junto com as águas coloridas. o reflexo dos sóis projeta no mar uma constelação de cometas e o espaço restrito de areia, triangular, avança confusamente num torvelinho, com o chão trespassado por uma densa cabeleira de algas, amparando um casal exótico e soturno, trajando roupas de festa, como se o ponto extremo do triângulo fosse culminar em alguma derradeira profundeza.

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