terça-feira, junho 20, 2006

[a alma do poeta]

Os poetas não são canários, são homens! Por que cantariam o tempo inteiro? Imagine-se um homem que vivesse a declamar: ele não nos pareceria estúpido e arrogante? Se a Poesia nos arrebata, é justamente por seu caráter episódico e singular. O poeta nos dá um mundo onde nos apetece viver; suspende-nos por um instante acima da Terra, içando-nos a um ponto de onde podemos contemplá-la estática e maravilhosa: e assim a Poesia nos fornece uma Helena pela qual nos sacrificamos. Com as pontas dos dedos, pinçamos um tesouro inesgotável através do qual a Vida torna-se mais digna; seguimos para o túmulo com uma majestosa impertinência e abrindo mão de todas aquelas jóias que encerrávamos em nosso coração; cada pequena fração do tempo, por mais ridícula e medíocre que pudesse parecer, é revestida de uma nobreza inédita e assombrosa, como se fôssemos carregados por uma brisa fresca e inebriante.
Ah, o poeta é um comerciante de sonhos!... Através de suas mãos generosas nos fornece uma profusão exuberante de mundos ilusórios sobre os quais ondulamos em êxtase; retira de sua arca encantada um milhão de diamantes do Espírito. E que esplêndida abundância jorra de seus versos! A verdadeira poesia, como o poeta essencial, é irredutível e interminável. Um poeta mede a altura do incomensurável. Por mais que os interpretemos e tentemos penetrá-los através das diversas portas de que são providos, esbarramos sempre num alçapão. O ideal é que os deixemos quietos, sem serem molestados. Mas não tenhamos medo: eles ainda cantarão! Eles naturalmente romperão seu silêncio e nos dedicarão uma Nova Música. Se hoje não a compuseram ainda, isto se deve estritamente à necessidade permanente de cantar que reclamamos deles. Outorguemo-los então o direito ao sigilo, e a um segredo passageiro: é imprescindível que hibernem durante o tempo necessário, para que depois no-lo revelem belo e luminoso!
Observando-os percebe-se um frêmito murmúrio na sua quietude, há como que uma súplica por paz temporária e descanso às suas cordas vocais – e talvez para que vibrem no futuro mais fortes e mais harmoniosas do que nos soam agora... Quiçá então se nos estendam tapetes reais sob nossas botas! Pois não são por coroas ou cetros que se distinguem os nobres e os monarcas, mas pelo quanto de poesia que lhes infla o espírito.
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E onde estariam os nossos reservatórios e os nossos compressores para a Poesia?... Seremos porventura finos como agulhas, e por isso explodimos o balão do Espírito? Ou senão onde estaremos abrigando o nosso Espírito – estará ele vagando como espectro?...
A Poesia é hoje uma flor exótica no jardim de nosso tempo. Em nossa época, tão logo se descobre um poeta, como atrás de um marginal criminoso, se estende igual a uma sombra uma taxionomia repugnante, e o classifica na mais baixa e vil categoria. O poeta é algo semelhante a um delinqüente social. Para ele o direito e a moral que compõem as nossas muralhas se tornaram intoleráveis, e como um selvagem ele não cessa de se dirigir à floresta, cada vez mais isolado como um ermitão no meio da metrópole. Paira, assim, sobre sua cabeça, uma nuvem negra, como uma espécie de aura maligna e diabólica, prestes a desabar... O poeta é um demônio urbano!... que atrai para dentro de seu peito todo o Mal que germina nos subúrbios das cidades, e como num liquidificador o dissolve e o purifica em um fluído mais homogêneo e apetitoso. O poeta é nesse caso um encantador. Ele ludibria a Justiça através de seus versos perfeitos, envolvendo-a por uma densa névoa de olvido.
Quando emite sua poesia, adormecida nos seus pulmões, é como se finalmente abandonasse o fundo de sua caverna, onde jazia até ali nas trevas reprimindo o seu Instinto. A história luminosa do Zaratustra é reencenada – e o Único Poeta reencarna! Como um sátiro, peregrina pelo mundo com seus cascos de bode ensinando sobre a animalidade do homem; traz a sabedoria da natureza para o palco onde macaqueia o homem civilizado, recordando-lhe encantos que este havia recalcado.
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Porém onde se escondem os nossos poetas – estarão eles extintos?! Outrora se exumou o cadáver da Poesia, e no entanto não havia falecido. Não deveremos desprezar jamais o poder de ressurreição desta deusa. Por ora, temos de desvendá-los (nós, os mineiradores da arte), estes homens-toupeiras, camuflados na terra, estes poetas sombrios de nossa época, com lanternas acopladas aos nossos capacetes, rompendo o eclipse que apagou o sol como uma esponja. O nosso ofício será durante os dias e as noites esquadrinhar os céus e os subterrâneos, e entre os escombros do velho mundo, assim como a um minério raro, com uma sonda localizar os nossos gênios – porque nos valerão igualmente um tesouro.

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Hoje os cômodos de nossos apartamentos se transformaram em cárceres privados; e a praça pública nos parece um ninho de ratos – tal é o pensamento mórbido do Poeta de nosso tempo. Em delírio, ele percorre a Terra com sua flauta celestial espalhando réquiens; descreve com minúcias o espetáculo inaudito de seu desespero. O pobre maldito cruza o seu horizonte anódino, pelos becos e centros fedorentos, rastejando seu esqueleto anômalo, ofendendo o olfato da sociedade com sua moralidade podre e degenerada. Como desejaria estrangular-se, este Poeta!
O que olham, não crêem [e, inversamente, sobre o que depositam fé, não podem ver!]. Tudo os repugna e tudo é indiferente à sua adoração e ao seu respeito. Cada objeto que eventualmente os esbarra é mergulhado num oceano de ácido sulfúrico, e nada sobrevive intacto ao seu bafo corrosivo; nada bóia nele sem sair dali enrugado e velho, ou com a aparência disforme e assimétrica. Quando falam, é como se borrifassem napalm sobre a carne flácida-desgastada de seus pares.

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(é um rebelde formal este poeta!... – não derrete nunca algo verdadeiramente sólido. Frágil e inofensiva condição de nossa Poesia! Do interior de nossos parques, no centro da urbe, ouve-se o brado do perdido na Selva, urrando aos céus enquanto as saídas estão desenhadas no chão.)

Um comentário:

Anônimo disse...

Fiz Uma Visitinha...
Como sempre, simplesmente Fantástico!!!
Grande abraço, Daniel!