quarta-feira, setembro 24, 2008

[a desolação]

oh, vaga, lança outra vez este filho à terra!
de onde jamais haveria de deixá-lo livrar-se...
diga, irmão, uma só razão para permanecer,
e, então, eu permanecerei!
como hei de suportar?!
não está tudo caindo?!
não está tudo desmanchando?!
não são sepulturas que tremulam ali adiante?!
oh, obscenas miragens!
não é puro deserto o destino que me aguarda?!
sim - de deserto! -, exulta acelerado o meu coração

***

qualquer idiota vence neste mundo,
todo bufão é apto a fazê-lo,
e eu, no entanto, julgo-me incapaz.
sou um verme entre sete bilhões;
sou o pior entre todos!
- e isto lá diz respeito a homens racionais!

[a vaidade]

o autêntico sinal entre nossos gênios é um modo pervertido de vaidade, e inversão da vontade [ou fraqueza de vontade]. neles o grau de humilhação amplia o orgulho e, atingir a lama e a podridão, corresponde a um máximo de bem-estar. em cada sinistro exemplar desses ratinhos urbanos pulsa tal crença [ou tal niilismo!]. portanto, não é propriamente um deprimido o gênio de nosso tempo: seu modus vivendi é antes a reflexão da velha má-consciência, o gozo particular do ressentimento, a reserva individual de sofrimento como posse de uma riqueza sobre-humana - é ainda o "abandono de si". são os envenenadores do século! sobre eles, cairia perfeitamente bem aquela fábula do crucificado:
"vejam como sofro, vejam como suporto! não será um deus quem suporta tamanho martírio? não deve haver nele um monstruoso saber? estará guardando um grande segredo? - não serei, por acaso, o alvo e a expiação suprema de vossos pecados? eis o rio onde desagüam vossas faltas! a pura superfície de punição e penitência de toda uma época! - isto! admirem-me! louvem-me! posso resistir a todas as privações e castigos; não posso, entretanto, viver sem vosso amor e honra! - e aqueles por quê não olham? por quê justamente aqueles não tomam a sério? não está aqui algo digno a rebaixar-se? - pois a vocês estão reservados piores sofrimentos e piores labutas! e tarde será para arrependimentos! e, é certo, não neste plano baixo e aparente (que tenho eu com mundos inferiores?)! não, aqui as penas ainda são terrivelmente brandas! como tenho piedade deste vosso desprezo e arrogância! pobres almas!"
[e, talvez no íntimo, após suspirar, sussure de si para si: "mal sabem que a mim só a cruz causa prazer! só pregado na cruz inspiro afeto! como os invejo, tais desprezadores e superficiais! e a minha inveja é do tamanho da minha cruz.]

[o verme]

estou definhando. tenho o tamanho de um besouro pequeno. todos sentem nojo de mim. não me surpreende, uma vez que vivo sujo e famélico. não sou um escritor, e tampouco sou qualquer coisa. a vaidade impediu-me a educação para a virtude. estou flutuando no mundo sem noção moral, sem respeito e sem deus. não existe nenhum deus a quem eu possa humilhar-me de joelhos. eu observo a cidade desde a minha pequena janela e não enxergo nada; é como se o mundo tivesse se desintegrado, como tudo houvesse sido eliminado, e restasse apenas a mente. uma mente doentia!... e a morte se recusasse a colher-me. é possível sentir a covardia correr entre as veias e formar coágulos enormes como cogumelos a ponto de explodir e destruir o teto sobre o meu crânio.
***

só posso escrever em tom de despedida. um homem triste vive a lamentar-se e a dizer adeus a tudo: à amada, à poesia e à vida. e tudo é insuportavelmente hipócrita! em seu eu profundo quer dizer sim a tudo – até ao mais pequeno e ao mais desprezível. quando escreve, em terrível depressão, deseja afagar a si mesmo. na solidão, no desespero, na iminência do ato final, o poeta faz amor. seu discurso à humanidade é falso e alegórico. fala todo tempo como que diante de um espelho – e não se fala diante dos espelhos sem falsear. tudo, portanto, é exagerado [e, no fundo, excessivamente teatral]. no limite da expressão estética encontra-se o macaco. o simiesco é o fruto da expansão desmedida da consciência deprimida. a ordem perfeita exige do homem o suicídio – mas o homem é meramente um sonho...
***
a morte me surpreendeu muito prematuramente. mas mil vezes seria preferível o túmulo a esta morte vil: a morte social. houve uma época em que o pressentimento da extinção era motivo para belos dramas: o sofrimento valia a tragédia. hoje não há mais beleza ou fruição estética no aniquilamento, só existe o frio e o vazio... para onde desabaram as cores e as metáforas?! para onde embarcaram os sóis?! sobrou unicamente uma rocha dura, uma pedra gelada e cinza: um mineral morto. o que deixo aos homens além de meus ossos?! é tudo o que, no fim, a terra requer desta passagem vã.
***

em que contexto o homem abandona o mundo e entrega-se à dissipação?! eu pressinto o álcool comendo-me aos grãos, e nada me é capaz de impelir contra isto. é já a fatalidade quem brinca com o meu destino.
se a ordem trabalhasse no mesmo sentido; se a ordem desprezasse a morte do indivíduo, por exemplo, como a ordem cósmica; se eu não nadasse contra a corrente; sim, então tudo estaria consumado – e, talvez, não houvesse mais sofrimento. porém, a ordem, através de seus simulacros, sob a aparência do amor e a face da fraternidade, impõe a morte moral contra a destruição corpórea pura e simples.
antes uma vontade de nada do que nada de vontade - na opinião do homem fraco, a ordem é a verdadeira culpada da sua contínua amplificação de tibieza. ele, no limite de sua covardia, não mais admite em si um único indício de saúde; recusa-se a reabilitar-se e, por fim, só pode sobreviver da transgressão. o enigma vital do deprimido, e, no extremo, sua última possibilidade de existência como ordenação da vontade, é a morte voluntária - e a consciência de contribuir para sua própria danação.

[a arte pictórica]

o verdadeiro artista demonstra a fina percepção de que a arte pictórica pode cobrir o acontecimento histórico e retratar o cotidiano, e que, entretanto, para torná-la uma obra de arte universal, precisa preservar o fundo mítico do tema, conservar a onipresença do mito, que paralisa o Tempo e suspende a História, içando o homem a uma posição sobrenatural e divina; então, nestes acasos raros, a pintura não só enrijece e petrifica o acontecimento histórico, por natureza fugaz, porém o interpreta sob uma ótica elevada, ultrapassando o destino dos homens palpáveis e concretos, e atira um manto sobre todos os seus ancestrais e descendentes, para que estes, no futuro, repitam a dança eterna que emerge da tela.

terça-feira, setembro 23, 2008

PABLO NERUDA do "Poema 20" de "Veinte poemas de amor y una canción desesperada"

"De otro. Será de otro. Como antes de mis besos. Su voz, su cuerpo claro. Sus ojos infinitos. Ya no la quiero, es cierto, pero tal vez la quiero. Es tan corto el amor, y es tan largo el olvido. Porque en noches como esta la tuve entre mis brazos, mi alma no se contenta con haberla perdido. Aunque éste sea el último dolor que ella me causa, y éstos sean los últimos versos que yo le escribo."

[os mártires]

é como se eles expurgassem sozinhos as dores da Humanidade; protagonizassem sob a iluminação dos holofotes o drama que ocorre na penumbra e no subterrâneo dos seres, encarnando a tragédia de todos nós. Jamais existirão homens inteiramente imaculados. Os homens santos são aqueles que vencem a si mesmos, que conseguem superar a si mesmos. A nódoa que por ventura manche a história de um homem varia de indivíduo para indivíduo. Não existe uma referência que vigore para a totalidade do gênero humano e que possa medir a moralidade de todos os seus atos e suas idéias. No meu modo de enxergar as coisas, cada ser humano, logo que nasce, é dotado de uma balança específica e individual a qual durante todo o período de sua existência ele esforça-se por ajustar, tateando o seu próprio instrumento como um cego. Não existiu um só homem santo que tenha atravessado o mundo incólume, completamente imune ao desmedido, que em alguma oportunidade não tenha também sujado as mãos...

[os poetas modernos]

Os historiadores da literatura transformaram os poetas modernos em homens diabólicos, difundiram uma concepção ectoplasmática em que os poetas são verdadeiros injustiçados dos céus. Eu posso imaginar estes historiadores elaborando suas teses onde os poetas aparecem como mártires que agonizavam numa cruz imaginária, como mendigos imundos e maltrapilhos com crânios maravilhosos, ou homens muito magros que tinham vermes enormes nos estômagos, etc. Por serem um pouco necrófilos, os historiadores invocam essas imagens em que homens de carne e osso passeiam como mortos-vivos, como cadáveres andantes e etc. Eu não acho que isto seja verdadeiro: porque o poeta é um burguês, e um burguês nunca é totalmente honesto. Se por um lado é verdade que mergulharam nas profundezas, e conheceram a maldição de viver onde não existe luz, nunca arriscaram verdadeiramente suas vidas. Os burgueses nunca mergulharam muito fundo no oceano. Podemos sinteticamente dividi-los em três classes – imagine, como disse um filósofo grego, que a água é a vida: alguns, dentre eles, correm na praia e atiram-se na água rasa, onde ficam se desviando das ondas maiores, ora enfiando a cabeça para debaixo d’água, ora subindo a superfície assombrados; outros, mais curiosos e mais espirituosos, desabam no alto-mar cheios de paixão com escafandros e com cápsulas de oxigênio nas costas, contemplando o universo marinho encerrados na sua proteção hermética; enquanto a maioria, legitimamente denominados os superficiais, permanece deitada na areia da orla, com a pele untada de protetor solar, espantando um enxame de insetos que bóiam no ar. Os burgueses! – eles vivem com medo de se afogar... Os poetas que suportaram as profundezas são raros, geralmente eles aprendem a nadar e movimentam os braços na direção da praia; a imensa maioria sucumbe aos seus instintos de classe, e vai ensinar poesia na academia ou declamar versos em bares.

[esperança]

Indiscutivelmente Mandy sabia como me deixar deprimido. Tinha um prazer mórbido e dilatado em relembrar a minha esterilidade. Jamais vou compreender porque, justamente para ela, sempre me esforçava para me mostrar mais luminoso ou mais genial do que era na verdade. Se por um lado era visível que alguma parte minha apodrecia e que era pura carne putrefata – como se estivesse morta, como ela dizia –, eu juro que existia também uma outra parte, talvez imperceptível, insignificante, semi-oculta, minimamente quantificável, e que ela evidentemente desprezava, mas que se mantinha acesa, que ardia e crepitava entre os escombros, e que suficientemente friccionada, no futuro, explodiria como mil foguetes de artifício. Esta fração sobrevivente não tolerava que Mandy me espezinhasse. Embora fosse exteriormente incognoscível, a partícula de vida, o elemento de força e potência resistente em mim brilhava e reluzia como uma pira irreprimível e inesgotável.

[a perdição]

Quando o vejo – perdoe-me a franqueza –, posso vê-lo extinguindo-se como a cabeça de um palito de fósforo: muito cedo veremos a sua hora derradeira. Sim, você agora está como que inutilizado em um leito de hospital alojado no seu próprio cérebro, e repleto de enfermidades até o pescoço. Não é possível que não perceba as mãos de enxofre da História em volta de seu pescoço lhe estrangulando! As pessoas o abominam – eu preciso dizer – porque você é uma espécie de inválido moral, de libertino paraplégico que não se dispõe a dar o menor dos passos em direção a Deus ou ao seu próximo. Que monstro você é! Tanto o seu corpo como a sua alma se converteram em uma câmara escura. Você se transformou em uma caverna na qual é impossível um resquício de luz poder penetrar; nesse seu intelecto satânico, me parece, nenhuma chama de luz é capaz de freqüentar ou vigorar estavelmente – eliminando, por assim dizer, a sua densa partícula negra – a não ser que seja inevitavelmente um fogo destrutivo e amaldiçoado. Você é um homem perdido, eis a verdade! Nunca irá exclamar, como Goethe no fim da vida, que deseja mais luz, mas suspirará algo como ‘mais trevas e mais tormentas’... Eu juro por tudo que me é sagrado que jamais compreenderei a razão pela qual você ainda se julga um poeta! – embora creia que esta seja apenas uma parte da arrogância comum a todos os seus ‘anjos’ que caem do céu renegando a Deus.

[objeção]

Eu prefiro imaginar os meus deuses voando no ar como serafins. Você não se comove com a visão daqueles anjos inocentes e puros pintados por Rafael? Não, é claro, você não deve se comover! porque detesta a paz, o amor, a beleza, a justiça, e tudo o que vem de Deus. O seu problema é a sua queda pela indecência. Não suporto a sua adoração ao que é horrendo e podre, sua predileção doentia às coisas que estão se degradando, se decompondo, se degenerando... Todo homem entretanto que for um perdedor completo, você o terá em alta conta. É por isso que você me odeia, porque não estou com você e seus ratos na cova de Satã!

[o poeta corcunda]

para bêbados - o significado de uma cerca para o ébrio, por exemplo, não é evidentemente o mesmo de um homem lúcido. No cérebro do bêbado, tudo está pendurado de cabeça para baixo; as idéias que faz das coisas dormem em seu teto como morcegos negros. Sim, ele altera o seu sono, o seu período de vigília – ele modifica o próprio ciclo da natureza! O bêbado não pode viver sem deformar, sem distorcer ou destruir o mundo; ele é o desagregador, o pária, a força individual em combate contra os elementos de coesão social, subvertendo a ordem superficial a serviço de uma divindade esquecida.
***
[O bêbado é uma segunda natureza do poeta. O poeta é aparentemente o bêbado primitivo - ou o ébrio com o estômago cheio. Em certas aparições, o poeta é somente uma farsa (uma fantasia incorporada ao bêbado original), ou a ausência de limites procurando expressão. Mesmo os bêbados têm ereções...]

[o grande desgosto]

Às vezes eu penso que o Homem é como uma vela acesa na História; sim, uma vela com uma chama impetuosa e voraz numa montanha alta onde ela bruxuleia e ameaça extinguir-se e que será, num dia muito frio, definitivamente apagada pelos ventos congelantes do Tempo. Então tudo o que consideramos como sólido, como duradouro e definitivo, e que foi construído por nossa civilização durante os últimos milênios, será simplesmente apreciado como um sonho perdido na grande noite da História.
***
È um erro estabelecer a regra do movimento da História como sendo uma polarização entre a civilização e a barbárie, ou uma dualidade entre o pensamento racional e o caos embriagado, que o solapa e o dilui de tempos em tempos. A ausência de uma explicação teleológica para o desenrolar da história, para o fundamento do universo, marca uma divisão cega entre a grande noite, na qual o homem inexistia, aguardando confinado em uma semente, e o intervalo mínimo em que nos foi propiciado um estreito facho de luz e no qual nós bocejamos sob o sol. É parte de nosso orgulho e de nossa arrogância conceber o mundo do modo como até o momento o concebemos, pretendendo que à toda complexa regulação da galáxia corresponda alguma área do nosso domínio intelectual. Imagine se uma lhama ou um antílope, por exemplo, emergissem por um instante de seu silêncio e nos dirigissem uma única frase – nosso mundo não explodiria de imediato? (e quantos lhamas e antílopes ainda falam em nosso tempo!)
***
Estamos à beira da ruína, é o que eu pretendo afirmar! A presunção de que trajetória do homem é uma eterna e contínua evolução não resiste à menor aferição isenta. O conhecimento dessa verdade dolorosa, o conhecimento da natureza perecível, curta, mesquinha e egoísta, que possuímos como se fosse a jóia mais delicada que existe, deve nos orientar nos próximos séculos como uma bússola do Ser. Não podemos temer quebrá-la! Estamos por demasiado tempo acorrentados na rocha em que se transformou o Iluminismo. O objetivo final da existência não pode ser unicamente a conservação doentia de nossa civilização, ou nossa satisfação com nós mesmos, uma vez que não é a nossa civilização que está em jogo na História, mas nós mesmos. Não é mais possível suportar tanta repressão e tantos crimes contra nós próprios em nome da civilização. Viver não é a conservação ridícula da vida, não se trata meramente de uma questão de sobrevivência. Como dizia Nietzsche, é chegado o momento de viver perigosamente, sempre para frente, rugindo, como um rio.
***
Eu desejo, do fundo do coração, que os jovens que nos substituirão sejam mais felizes do que fomos até agora, e que a próxima geração possa martelar os próprios cérebros e dançar sobre a carcaça da nossa sociedade atual.

[o disfarce da Natureza; para Mandy]

Não me permitirei dar vazão ao impulso à verdade. Para quê? ‘Eis a vitória da lógica, o descanso da verdade... a dialética!’? A finalidade da dialética é a terra arrasada. O segredo da verdade é que ela não constrói. Não foi a verdade ou a razão quem erigiu os supostos “benefícios da civilização”, que você tão orgulhosamente celebra e difunde, porém, a ilusão da verdade. O trabalho de construir é sempre realizado pela arte, que é fundamentalmente enganadora. Todos os nossos monumentos estão sedimentados sobre a pedra essencial do erro. Em si, a verdade destrói, devasta e arruína; o procedimento da verdade, que pode ser comparado ao comportamento do pensador, é puramente de inspeção, de desconfiança, de suspeita e de exame. A lupa natural do filósofo serve para sondar e limpar o caminho, não para preenchê-lo: eis o método do Norte! Não é fortuito, por exemplo, que ali tenham crescido godos, visigodos, ostrogodos, vândalos, anglos, saxões, lombardos, vikings e borgundios. Na natureza, Mandy, nada é completamente aleatório, tudo surge por uma grande necessidade (uma necessidade que, entretanto, até agora, nos está oculta e que apenas tateamos). Na minha opinião, o destino do Homem é reconstruir Roma por toda a Eternidade – neste ponto, minha cara, somos tão infantis quanto aquela criança de Heráclito que erigia castelos de areia na orla; apesar de seu esforço jesuítico, ninguém alcançará maturidade suficiente para contemplar este reino completo, perfeito e acabado, que você julga nos esperar no futuro. A Civitate Dei prosseguirá um sonho irrealizável, especialmente porque, em meu juízo, a divindade não caminha igual ao macaco, como vocês supõem, mas gira, roda, dança em torvelinho, flutua em círculos esvoaçantes, e retorna. O paraíso não é apenas uma visão! Ele não está parado no horizonte. O paraíso é real e se movimenta dentro de uma enorme cápsula cilíndrica manejada pela Natureza; e nela a Humanidade desfila rodopiante e inebriada tal qual uma hélice sagrada e inteligente, onde dança e estremece, geme e solta um murmúrio frêmito. Acredite, Mandy, o Éden não está desenhado em uma tela estática, previsto ou esboçado em algum livro santo; o Céu não está pendurado na parede dura do futuro: ele não é o sítio no Tempo e no Espaço onde nos isolaremos da Vida – o paraíso, ao invés disso, é o mergulho profundo e demorado no mundo, no que há de podre e santo na Vida. O paraíso, ao meu ver, é o próprio trabalho do homem de compor a si mesmo, a sua construção incessante; ele existe e impera, em uma escala flutuante e variável, dentro de cada ser. Em cada comunidade, vigora um grau particular de níveis paradisíacos; e, em cada mônada do universo, a parte luminosa da Natureza brilha e fulgura incandescentemente – sim, é lamentável, apesar de tudo, que a fração observável, o grau visível, curto e restrito, de nossa jornada, demonstre-nos precisamente o inverso e realce, por todos os lados, o impreciso, o inacabado, o imperfeito: talvez tenha sido este o truque, o golpe e o subterfúgio, que a Natureza encontrou – truque para o qual contribuiu a nossa crença nos sentidos: e porque acreditamos tão solidamente em nossas impressões momentâneas. Porque não pesamos adequadamente os nossos frutos, temos esta idéia niilista e desfavorável acerca do homem, e, como castigo, colocamo-lo a trabalhar (como se ele já não tivesse trabalho o suficiente!). Em um enigma:
Em verdade vos digo que o Homem é um sopro. Não tocarás com as mãos jamais naquele que sopra.

[o pessimismo do Norte; diálogo imaginário]

Mandy analisava tudo atentamente, com sua sobrancelha arqueada, de dentro de seu frigorífico mental. Evidentemente, sob a sua temperatura ártica, eu sabia que ela era portadora de uma verdade e que, logicamente, minha elucubrações inflamadas não se sustentariam ao seu sopro de gelo: mas eu tinha o Sonho! Este fato lhe aterrorizava, porque, durante a sua vida inteira, Mandy se ocupou para que os sonhos infantis e inocentes da humanidade se dissipassem. Ela trabalhava para o engrandecimento moral do Homem – e tal caminho, segundo ela, só poderia ser alcançado através da repressão ao elemento individualista, desagregador e sonhador do homem. Possuía uma espécie de mantra interior: “ao Norte habita a Verdade! avante para o Norte, soldados da Razão!”.
Embora o Norte esteja por toda a parte, inconcluso e precário, disfarçado entre o Caos universal, sob a bandeira da Lei e da Ordem, o Sul permanece pulsante e latente, nos escaninhos de nosso desejo. Entretanto o Sul, apesar de representar uma tentação constante (talvez indestrutível!), é um abismo ao qual poucos homens sucumbem. Outrora, lembro, eu marchei junto àquele exército pálido seguindo o Norte; porém, enquanto todos dormiam como pedras, eu lutava contra a minha alma desertora. E os sonhos não têm pescoço, não se pode estrangulá-los! O sonho é impalpável e etéreo, não pode ser liquidado ou extraído da mente de um homem como se procede, por exemplo, com relação a um tumor. Eu estava cansado de dormir sobre o chão frio, sob o cobertor de neve da Razão, sonhando com meu cérebro de gelo. ‘Foda-se o futuro! Foda-se o imenso sol que se levanta no horizonte inalcançável! Prefiro ser um extravagante vagando entre as nuvens a um mendigo na terra!’. Por ventura me perguntarão ‘para onde seguir?’: ora, para qualquer lugar, para o fundo do Inferno, desde que não seja para frente e contanto que não marchemos mais. Não existe mais uma só causa que valha a nossa marcha! Sinto no rosto o vento morno do Sul, penetrando-me através de meus poros e me carregando embriagado nos seus braços invisíveis; posso espiar Helena dançando seminua na clareira de uma floresta; contemplar Ísis fumando um cigarro numa varanda de Floripa (sorvendo aquele perfume inesquecível!) ou ouvir Nietzsche declamando versos na baía de Nápoles numa tarde chuvosa de verão:

O Mediterrâneo jaz num sono branco
A não ser por uma única vela púrpura.
Rochedo, figueira, torre e porto mantêm
A sua inocência pagã; as ovelhas
Balindo nesta paz que nada quebra.
Cansado de todo o Norte estava eu
E do seu lento e metódico passo.
Pedi ao vento que me elevasse
E aprendi com todas as aves a voar
E para Sul sobre o oceano me apressei.


E, por alguns instantes, permaneci imerso nestes pensamentos. Embora a atração irresistível dos ventos do Sul tenha me suspendido os neurônios por certo tempo, Mandy ainda estava postada no centro do hall, ereta e concentrada, expressando com o canto da boca o seu descontentamento e o quanto zombava do meu ar sonhador. Eu percebi que a minha aptidão mongol para devastar não encontrava consentimento em seus olhos, que Mandy personificava o totem da velha sociedade (um imenso espantalho com o rosto da Morte!). Sob sua ótica, de seu observatório nortista, eu havia me desligado à veneração do templo, corrompido os ícones sagrados, dissolvido os monumentos simbólicos e renegado à minha descendência primordial: era um filho bastardo, um desviado. Ela pensava em silêncio: “oh, pobre órfão!”. Via-se na penosa e dilacerante obrigação do juiz e do sacerdote de nosso tempo. “Afinal somos todos irmãos! Gostaria de abrigá-los todos sob o calor de meus braços, mas definitivamente não posso. É a Lei! A Lei sob a qual todos estamos subjugados, a qual todos devemos respeitar – e com o máximo de zelo. Não pense que é fácil julgá-los! Mas não sou surda ao dever... Saiam, saiam daqui, seus corvos assassinos!”. Isto transparecia em seu semblante, simultaneamente severo e duro, tão pesado quanto deve ser o Norte, porém, misturado a uma compaixão indolente, que reconhece o quão impotente é perante as coações do Norte. Todavia, ela despertou de seu silêncio complacente e austero, recuperando a expressão que a férrea mão da Necessidade supostamente exigia dela – com uma voz rouca e aveludada, saída de uma gruta escondida no espaço:
“Era o que eu imaginava: sua descrição do Poeta corresponde a de um vagabundo luminoso! Deus, como você é previsível (e asqueroso)! Você despreza o trabalho, o raciocínio regrado e a responsabilidade coletiva; rejeita a possibilidade do poeta, como um camelo, carregar algo nos ombros, é avesso a todo o tipo de opressão; não vê uma importância social no ofício do poeta – ao invés disso, você determina unicamente que ele fique distanciado da massa, protegido, isolado em um apartamento de marfim imaginário. E ainda assim considera-se moderno! É por isso que você é uma nulidade! Considera-se um poeta – e verdadeiramente o é, na sua concepção da poesia. Porque, na sua concepção de poesia, o poeta está liberado de escrever, está autorizado a se calar. Não é incrível? Eu sinceramente acredito que tudo o que você disse é muito belo, mas é estúpido e não faz o mínimo sentido. Entre as suas proezas não consta razoabilidade. Você defende uma vertente de anarquismo que idolatra o ócio e a preguiça, e não a Poesia! Está no século errado ou será que é cego - e não pode remover os seus antolhos? Não é possível que não veja em toda a volta os benefícios oriundos do trabalho organizado, o triunfo da Razão em cada vitória de nossa civilização... Imagine que sua representação do poeta se generalizasse: não desabaríamos no Caos? Sim, pois posso prever, nessa condição, homens e mulheres lutando uns contra os outros dentro de uma bacia, no fundo de uma cratera, trocando ofensas e matando-se mutuamente pelos bens mais comuns e pelas migalhas mais desprezíveis. É a sua visão do Paraíso! É o seu Natal sobre a Terra!”.
Eis revelado o pessimismo sobre o homem! – a propósito, subjacente à toda consciência burguesa do mundo. O ideal burguês que ordena: ‘Não deixai o homem livre! Somos todos responsáveis pela segurança e preservação do coletivo!' Cada um deve impedir que se materialize a máxima bellum omnium contra omnes. O homem solitário e livre, que dança nos sonhos dos poetas, é um verdadeiro lobo – o qual devemos exterminar! Temos a missão, como rebanho, de evitar a formação destes predadores. O contrato está em jogo. Nada pode ser mais repugnante, para quem vem do Sul, do que tais fórmulas mortais, tais premonições negras e doentias proclamadas com ares catilinários.

[as igrejas modernas]

O comércio da ilusão não é mais exclusividade de Roma. As igrejas se multiplicaram na era da propaganda. Onde o homem se sentar poderá ver o paraíso desenhado no teto.
Os mercadores de sonhos estão camuflados e diluídos na imensa fauna social originada pelas teses liberais. Tudo é interpretado sob a ótica dos mercadores / Tudo cheira à feira!... E quanta coisa é em vão desperdiçada!
Onde reina a democracia, reina a bagunça. O platonismo popular se terrificou. Forjam-se ídolos artificiais projetando sombras na rocha gelada do nosso cérebro. Os nossos melhores poetas, os poetas perdidos, estão submersos pela imensa camada de bosta cultural que a indústria caga sobre nós.

[gio]

Ele sentava e permanecia em completo silêncio. Sempre lendo e bebendo café preto. O cara necessitava tanto de café quanto de oxigênio. Juro que se ele permanecesse um dia inteiro sem café preto, no outro dia o encontraríamos morto no chão, como um peixe que passasse o dia do lado de fora do aquário. Assumia uma postura eloqüente e, dali a pouco, estava certo que ele emitiria um grande juízo sobre a existência. Tinha esta impressão todos os dias, mas ele sempre se manteve mudo. Nunca me disse nada. Não sei se ficou calado por humildade ou qualquer coisa que o valha. A verdade é que ele tinha uma expressão de quem realmente ia ao fundo das coisas, de alguém que não se deixava levar pelos nevoeiros. Quando ele despertava da profunda imersão em que se metia, dizia algo pela metade, soluçava, suspendia o pensamento em pleno desenvolvimento e se concentrava na parede, como se estivesse lendo algo escrito nos tijolos que somente ele era capaz de enxergar. Eu era pródigo em teorias, exemplos e viagens mentais. Perdia-me nadando entre a espuma, enquanto o Gio parecia querer morrer afogado lá no fundo. Tenho certeza de que ele é um grande gênio da nossa época. Só eu vou saber disso. Ele nunca saberá disso: é muito sábio pra ter uma conclusão desta espécie.

segunda-feira, setembro 22, 2008

[espasmo]

eu soube que precisava relatar o meu passado, que eu não possuía talento para criar estórias, que o relato autobiográfico era um desejo profundo do meu inconsciente, que era impossível, para mim, escrever sobre os movimentos abolicionistas e golpes militares e guerras de libertação, e que, na História, os mártires, os santos, os rebeldes e todos os heróis vítimas de injustiças e que morreram em vão existem no nosso tempo, perdurando em inércia, que estão caindo como moscas, sofrendo de diabetes e se drogando e cuspindo enormes pedaços de seus pulmões no chão frio e duro, morrendo de doenças hepáticas e tendo overdoses irreversíveis de cocaína, e que, portanto, é difícil de compreender, mas os grandes homens ainda vivem entre nós e estão se borrando nas calças em hospitais e manicômios, vomitando nos fundos dos botecos, em banheiros sujos e fétidos, e vivendo isolados e deprimidos como vira-latas magros, com os corações transformados em um tubérculo mortal, e que eles, os nossos heróis, não estão só petrificados nos parques, nos monumentos e nas igrejas, sendo alvos de excrementos de pássaros; sim, todos os gênios estão tomando cocô de pomba nos ombros e pisando em merda de cachorro, e estamos desolados porque as peças fabulosas que eles criam, seus sonhos de Shakespeare, se desenrolam na mente, porque a criação permite que o gênio mova o mundo com o seu intelecto, e estamos afundando sozinhos num mundo individual e egoísta e falecendo sem criar coisa alguma, vivendo num mundo ilusório que não legará absolutamente nada às gerações futuras. e, afinal, o que é a criação? eu sinto que é estar em cima de um muro e rodeado de nada e que criar é antes um ato de coragem e loucura do que de composição, não é como pegar barro e ficar amassando. arremessar-se e voar, sem asas, sobre o nada imenso, numa queda constante e interminável, desabando para o fundo de um abismo, incognoscível e infinito... sim, uma viagem! e o passado também é um vazio que não deixa ruínas. os escombros são já a forma do presente. eu preciso curtir o meu passado, sei lá, como uma viagem de ácido e não só fotografá-lo com olhos de peixe morto. e por que os nossos deuses pirados não escrevem? por que justamente eu que tenho um cérebro de repolho preciso escrever? porque eles estão todos fascinados com suas fossas, lá sozinhos, renunciando, envoltos com suas neuroses psicanalíticas, deprimidos com tudo tipo Holden Caulfield, porque, desde Freud, alguém razoavelmente inteligente é fissurado e obcecado e viciado em análise e auto-análise, e tudo vira matéria de erudição e conhecimento e nada, definitivamente nada, se transforma em vida. eu não quero escrever mais um romance pequeno-burguês-entediado. a nossa classe social está coberta de tédio e desolação, e a saída para ela se esconde na miséria e na privação. só a feiúra é capaz de nos abalar. tudo o que é feio é ovacionado. tudo o que é ridículo e simples é aplaudido. a beleza agora fede. o apogeu do capitalismo nos tornou o belo insuportável. eu cansei da paz. tudo dá sono e vontade de beber. nunca mais existirá aquela satisfação transbordante da nobreza. nada agora merece reverência. não há no mundo algo similar a uma arte imperial. nenhum homem a quem se prostrar, nenhuma obra, nenhum ideal! precisamos escalar os fatos como alpinistas. quem não está cercado de montes? quem se encontra só com o vento entre as cordilheiras? quem pode enxergar algo lá do alto? cada indivíduo percorre a vida com uma bicicleta imaginária cortando o espaço. flutuando no vácuo. em frente! em frente! como se o tempo não existisse. como Henry Miller no Brooklyn observando o outono despencar das árvores como páginas de calendário. eis um sonho fabuloso! dançando com os cães como os mendigos loucos de Amsterdã. dormindo na margem do Sena, sob as intempéries e as rajadas de ventos inclementes. contemplando Paris fervilhar ao fundo, boiando sobre tubos de néon coloridos que explodem feito estrelas cintilantes... os nossos intelectuais passeiam meio ébrios diante dos cabarets luxuosos, nos largos bulevares que parecem levar ao paraíso. arquitetando uma idéia de vida extra-terrena, talvez sobreterrena. o intelecto burguês! mergulhado na lama e na podridão. mais miserável que um piolho sujo. assolado pela depressão congênita. a plenitude material se revelou diabólica. nosso espírito ocidental se assemelha àquele viajante que sonhando atravessar os continentes tocava o mapa com os dedos das mãos. e quão imprecisa é nossa cartografia! ignoramos a escala louca da mente. no fim das contas, estamos sós, dedilhando primitivamente os nossos instrumentos, acreditando erroneamente dominá-los, que neles somos instruídos e providos de técnica e providos de virtuosismo. não somos virtuoses, e nem sequer somos eruditos. não temos ciência alguma das cordas que vibram em nós. nós, os desafinados! não compreendemos nada sobre o que ocorre no íntimo do nosso corpo e da nossa alma. tudo o que temos agora é um punhado de músculos e nervos e ossos. inversamente ao que cremos, nós, os vaidosos, nossa razão é superficial. nosso conhecimento das coisas é ilusório e decepcionante. conhecemos os nossos órgãos interiores e a finalidade de nossas ações como um caixa de música entende de Beethoven, e o fato de executarmos uma sinfonia, de darmos forma e andamento nela, não significa que compreendemos o seu objetivo, ou que seja obrigatório que venhamos a conhecê-lo no futuro. tudo o que fazemos se restringe a descrever em minúcias e em fórmulas os processos. não suspeitamos, em absoluto, o Quê anima. um sonho miserável e sujo é preferível à nossa ciência. eis o gênio carregando sua casa nas costas. o desespero oriundo da pobreza espiritual... é o pressuposto único da miséria material que acompanha ao gênio asceta. o sábio detém em si todas as chaves e pode abrir a porta que desejar. veja-se, por exemplo, os avanços superiores de Maquiavel. ele só não subiu mais porque já enxergava o suficiente de sua posição. as paisagens que nos descreveu são amplas e grandiosas, e tudo o que se estende abaixo de si parece estar localizado em um abismo muito longínquo. naquele tempo havia esperança. hoje os homens valorosos ambicionam o chão. deitam-se na sarjeta como porcos. todo o nosso ouro está imiscuído à lama e ao lodo. nossos gênios peregrinam através da massa urbana entoando hinos franciscanos, exaltando a pobreza e elevando os indigentes ao trono universal. tanto a beleza como os valores foram corrompidos. a missão da igreja expirou. os bispos estão nadando em dinheiro. a moeda é o novo corpo de Cristo. a idéia do catolicismo fracassou. nada temos mais a oferecer senão os ossos. tudo o que continha vida foi sacrificado. a natureza santa foi dissecada. por tudo que é sagrado, temos que acabar logo com deus! os deuses foram uma invenção fascinante. no teatro da História, os deuses representaram o apogeu sísmico do coro metafísico que flutua no firmamento como uma sonata eterna que envolve o plano do Homem. um triunfo da Arte que só poderá ser comparado à sua derrocada. a idéia cumpriu o seu ciclo. os povos se excederam com a piada, e hoje a idéia se encontra demasiadamente séria. a imagem do novo paraíso é como “a noite estrelada no Ródano”, do deus louco Van Gogh. rompe com a nossa visão calcificada do mundo. eu vejo ali o prenúncio do apocalipse de nossa época. e um poeta cantando: “brotam no firmamento dezenas de medianos sóis. são sóis amarelos. como fogos de artifício sobre uma cortina sombria”. e o retrato do abismo do mundo é uma cidade ardendo sob a órbita incrível dos sóis, e os edifícios queimando como imensas labaredas e refletindo no denso oceano os fogos embaçados e deformados pela dança frenética das ondas, e uma série de colunas incandescentes serpenteando numa chapa negra de água, e mesmo que fixos no céu, os sóis contraindo-se como um acordeão velho alucinado, e num intervalo do céu negro, revela-se um demônio gigante no horizonte longínquo da tempestade, o mar funde-se à terra até não se distinguir o imenso plano líquido do apertado corredor de areia que ondula junto com as águas coloridas. o reflexo dos sóis projeta no mar uma constelação de cometas e o espaço restrito de areia, triangular, avança confusamente num torvelinho, com o chão trespassado por uma densa cabeleira de algas, amparando um casal exótico e soturno, trajando roupas de festa, como se o ponto extremo do triângulo fosse culminar em alguma derradeira profundeza.

[o filantrópo - fruto de uma boa digestão]

filantropia - obedecemos hoje o hábito não muito tolo de julgar a filantropia um comércio interesseiro, e, conforme a moda liberal, em um pensamento atual, consideramo-na um duplo cálculo: em um sentido religioso, e, deve-se dizer, também político, influi como purificação da má-consciência e eliminação da culpa social; enquanto, em um plano individual, menos simbólico, mostra-se um estratagema de dependência pessoal. tais considerações, é certo, são naturais à alma moderna, e ignoram os efeitos concretos para se concentrar exclusivamente na idéia, naquilo que é a possessão coletiva de uma época, de sorte que o filantrópo tornou-se hoje mau e egoísta, e seus atos, expostos sob a luz do cálculo frio, são reputados tiranos. em contrapartida, e ainda sob o domínio do grande olho da moral, o miserável socorrido e assistido em sua pobreza, supostamente por maus instintos, é convertido em vítima; contraiu, sem o querer, uma dívida, de um único lance, material e moral.
para o liberal, e no limite para o materialista, não há grandeza em o homem ajudar o homem; entretanto se os homens forem sujeitos à sua própria sorte, não existirá possibilidade de reconciliação total, não haverá jamais algo como união mística. o coração dos homens há de ser terno - nem que o seja somente em superfície! e, exista a alma ou só o oxigênio, creio que o senso de gratidão está presente em todos os seres. mesmo que uns sejam dotados de menor benevolência do que outros, a bondade dos demais os contamina positivamente; e, assim como um acontecimento depende de outro, através da lei de causa e efeito, ocorre igualmente que todos acontecimentos dependem do menor deles, em uma cadeia infinita: o bem colherá o bem.
o tempo, pode-se dizer, é tal teia cobrindo como um véu todas as épocas; uma “festa sempiterna” para a qual cada instante contém uma reserva insondável de força, uma energia inextingüível, e onde cada homem procura conhecer o seu espaço. assim, contra toda a ciência, um ato não se desmaterializa totalmente no presente, porém está como que condenado pela eternidade a se fazer ressoar. o que realmente importa é a existência eterna desta porta para todos os seres, sem o saberem, tornarem-se grandes.
a boa ação, em unidade com a boa consciência, aproxima os homens; é a caridade, e não o egoísmo, que os multiplica e os torna fortes; à indiferença, só correspondem o desdém e o desprezo. o filantropo não é mais um, mas torna-se dois e, às vezes, mais homens (por participação!) – e todas as coisas grandes, por sua própria enormidade, só se pode sustentá-las por diversos homens.

[arte da fome]

O homem assolado pela miséria é terminantemente incapaz de escrever; a meu ver, o artista faminto é o criador da arte moribunda. Os mendigos, entre os grandes criadores da História, não foram além das religiões mórbidas. A boa digestão e a saúde do corpo, um certo ócio satisfeito do estômago, são sumamente necessários, uma vez que a arte é a plenitude do espírito e do corpo. A beleza não advém da escassez e da penúria – o belo é fruto da abundância e da boa fortuna. Há fossa demais no mundo, talvez como em tempo algum, e nem por isso possuímos uma boa literatura; muitos homens bons sucumbiram por tal erro de juízo, impondo-se disciplinas cadavéricas; e quanto mais se arruinavam em benefício da arte, mais eram absorvidos pelo enigma da morte, consumidos pela necessidade, sem escrever um só livro elevado; e, segundo tal lógica, o fracasso era atribuído genericamente ao mundo, ao mundo que não compreende o gênio, que não tem nervos suficientes para o sofrimento, que possui a mente estreita e limitada. O gênio desajustado é fruto da perversão da arte, da antilógica sombria que converte o homem degradado e infame em homem superior; de algum modo, em razão da preponderância do ressentimento e da inveja, da cobiça mais hostil e baixa aos bens dos afortunados, é o caminho aberto para o homicídio – e, em um acesso de humilhação orgulhosa, também para o suicídio.

[autocrítica]

A cavalaria jamais romperá a fronteira enquanto não se desligar da retaguarda, parar de olhar para trás, e dormir descansada na piscina do passado. O homem de ação determinará os olhos duros e fixos no limiar do horizonte. O historiador, por exemplo, é o arquétipo perfeito do homem mórbido com antenas de inseto. Os grandes profetas do futuro não serão como mosquitos rondando a água parada. A rebelião não manterá o pacto com a verdade, não lembrará nada deste desenterrar e deste exumar que constituem o juramento sacrossanto ao contrato universal dos fracos.

[no princípio]

... ainda quando criança, eu sonhava ser possível conhecer toda a História Universal. Ela estava inteiramente condensada em densas enciclopédias e não mais do que uma dezena de sábios tinha acesso ao seu manancial inesgotável. Estes senhores não conviviam em sociedade, não tinham nada, e até desprezavam a civilização. Estavam tão integrados à ordem do mundo que, podia-se dizer, estavam ali desde sempre, escondidos, e em cada ponto do universo eles vigoravam e sopravam em consonância. Os mestres com os quais eu sonhava eram anciãos à beira da morte, com a idade do Tempo, com a pele descascando e caindo no solo, eram indianos marrons que entendiam todos os idiomas vivos e extintos em seus pormenores, em suas sutilezas, com todas as suas derivações e dialetos, e etc. Eu tinha verdadeira fascinação por homens afastados ou marginalizados; tinha em alta conta todos os humilhados. Os meus gênios viviam em existência paupérrima no deserto, nas selvas, nas montanhas ou no fundo do mar... Considerava-os, a qualquer instante, a ponto de desvendar o mistério da Criação. Em um intervalo luminoso, eles recitariam um poema eterno, ao som de cítaras, em escalas impossíveis, revelando o início e o fim de todas as coisas onde a própria vida exalaria de seus versos descrevendo espirais de incenso no ar e impregnando a natureza inteira com seu véu de energia...

Esboço para um Romance Natimorto

Maint joyal dort enseveli
Dans les ténèbres et l’oubli,
Bien loin des pioches et des sondes;

Mainte fleur épanche à regret
Son parfum doux comme un secret
Dans les solitudes profondes.

BAUDELAIRE


CENA I

Um okapi flutua no centro do hall seguido por uma imensa cauda flamejante. O crânio azul-esverdeado gira em rotações inquantificáveis e torce e estrangula o pescoço. Escalando o ar como uma máquina desgovernada. Escondido no fundo remoto e cego onde um cálice gigantesco e borbulhante mergulha em vapores. A grande neblina se espalha. E uns caras índios-astecas-maometanos, totalmente doidos tipo Isaac Lee, inalam a fumaça vinda de um narguillé.
... Encenando a Dança dos Camponeses, de Rubens! Os seres amalgamados em união cósmica. Já eram, na época, as mulheres a força motriz da humanidade. Latem, latem! A flauta ressoa – em marcha, em marcha... Girando. Hesitam sobre o chão movediço que engole os seus pés e avança sobre suas tíbias. L’amour! A grande valsa da eternidade afogando os seres.
O enredo de um filme pornográfico desfila na camada visível da Mente. A imagem da História é a fornicação. Ininterruptamente eras penetram eras. Não é a Vida uma puta insaciável (ou o Tempo um pênis colossal em seu pleno exercício imemorial e eterno)? Exilado no porão do Tempo Napoleão está fodendo Vercingetorix.
... Sonhando com a calcinha de renda vermelha-rosada-crua que paira sobre a altura dos joelhos dela. A imagem de seu sexo desnudo e resplandecente descola vagarosamente do meu cérebro e sucumbe, vaza e escoa entre a corrente nervosa, umedecida e espremida nos meus testículos, arfando, gemendo, uivando, ganindo, como uma locomotiva perdida engolindo o abismo. E, de súbito, o Tempo morre, os continentes desaparecem, as florestas são engolidas, os livros queimam, e tudo, completamente tudo, todas as coisas perecem e caem fulminantemente no Nada.
... Ísis dançante através de um vaso cheio d’água, deslizando como uma lesma na câmara ocular, e seus olhinhos dançam e vibram. E, no extremo, isto é uma despedida; é um último olhar desesperado e triste; uma elegia velha e mofada. Aos poucos, como uma música distante, içando-se sobre círculos de fumaça na luz mortiça, ela ressurge com o olhar mais misterioso e febril e mortificado que eu jamais vi, como os olhos fúnebres e tristonhos de um corcel insepulto. E era um infindável inverno ártico, nos dias mais frios e congelantes que já existiram sobre a terra, vivendo como uma enguia sob a cova fria coberta por uma  camada fina de gelo como um espelho. Ísis, doce Ísis! Um suspiro morre lentamente no passado como a fumaça do cigarro... e sorvendo seu suave perfume inolvidável.

***

Ah, Lua! aspiração imutável do poeta. Eleva-se sobre densa névoa. Canta e bóia sob o disco cintilante pendurado no teto do céu. Ilumina os seios fartos da negra. É impossível não lhe dirigir uma canção! Todo o homem dedica uma vez na vida um poema à Lua. Um poema sublime à negra que cresce como um cancro à parede firme do membro. Um poema sifilítico, no sentido profundo do termo. Um poema amargo e funesto. Um poema tétrico. Um poema autocanibalesco e suicida.
O aracnídeo negro-aveludado escala o muro do presente erguido sobre o tapete da Miséria. Além do limite, numa janela sem fim, contempla o futuro com seu periscópio vítreo. Em camadas finas surgem os espectros do Tempo, mais sólidos e reais, e se desfazem e desfiam como barbantes de plástico até completamente desaparecer.
Na madrugada, com uma fina luz, marchando em florestas à beira da Lagoa. Hey, Gio! O suave conhaque que nos espera sobre uma mesa velha e isolada. Eis o derradeiro veneno, o derradeiro néctar. Uma lamparina acesa, entre os livros comidos pelas traças, e as paredes de madeira despedaçadas e quentes nos guardam o conforto do futuro, a enorme catarata do crepúsculo.

***

O Homem desmaiado e nu sobre os ladrilhos gelados, e sozinho igual a um cadáver podre nadando no próprio sangue espesso como a noite, disfarçado na escuridão inviolável, imóvel e silencioso, mergulhado no agradável e caótico lago azul-madrepérola do tédio. “Está tudo escrito! Nada há mais a escrever!”.
Estou em cima do alçapão de barro assentado sobre a loucura. Tão inerte quanto uma estátua. E as luzes estão se apagando...

***

Schlap! Schlap! Um dálmata que havia adormecido junto ao meu corpo.
“Outono já”! (Mandy com O Homem Revoltado, de Camus)

***
“Eles divinizaram a blasfêmia!”. As palavras se derramaram sobre o meu cérebro como gotas de ácido sulfúrico. Eu nunca escreveria uma frase como esta. Quando imaginava escrever tratados aduladores sobre os supostos poetas malditos que infernizaram a eufórica burguesia dos séculos anteriores, muitos adágios surgiram na minha mente, e toda a espécie de ofensas e provocações, mas jamais me ocorreu que estes amaldiçoados formavam um tipo raro de endeusadores. Eu previa me tornar um destes flautistas na velhice assim que deixasse de tomar conhaque e pensar em vaginas. Eles transcenderam a calúnia. Só pode ser um Deus o condenado que compõe sonatas! - e tais poetas compuseram músicas perfeitas, e harmoniosas, sobre seu cadafalso; eles encenaram peças diabólicas, transfigurados e dopados, para transmitir a beleza. A respeito de nossos dias, eu penso que a indústria transformou a beleza em uma matéria suburbana ou ultraurbana [eis a opinião de um condenado]. Quem não pode consumir a beleza que circula na esfera burguesa, e quem não pode conceber a beleza reproduzida sob o signo da uniformidade, da repetição e da previsibilidade, e quem não pode respirar o ar do método da ciência natural, refugia-se no crime. Empresta ao crime um nome sagrado. Os comportamentos marginais, agressivos, criminosos, anti-sociais, de pura aniquilação, são cobertos de conteúdo artístico. Os antigos valores nobres de ordem e simetria tornaram-se obsoletos e repugnantes – e hostis à beleza moderna. A atmosfera viciada, depravada, torpe, devassa e profana que me circunda, e envolve toda a massa de perdedores, justifica porque o ladrão é o meu herói predileto neste Navio dos Loucos que se tornou nosso tempo. Enquanto os nossos próceres infames copulam bêbados e disputam um faisão ilusório suspenso no anzol da Morte, o verdadeiro herói periférico e imoral lhes toma as últimas migalhas sobre sua pobre balsa flutuante, e naufraga sozinho e delirante levando nas mãos os últimos resquícios com os quais é possível sobreviver com dignidade. Sim, hoje todos morremos solitários e melancólicos no fundo de um poço individual, deslizando no interior de um longuíssimo cano cilíndrico como num escorregador, experimentando um coquetel interminável de drogas mortíferas. Eu mesmo sinto que estou cruzando um daqueles túneis de esgotos fétidos, que estou em uma parte subterrânea de Paris ou de Londres, mas, ao mesmo tempo, também estou em um recanto além delas, abaixo delas – talvez como um rato?...