terça-feira, janeiro 03, 2006

[utilidade pública]

Esta introdução é dividida em quatro partes, cada uma delas representando um grupo de idéias convergentes conforme minha opinião. O primeiro conjunto de reflexões trata mais precisamente da percepção do tempo histórico na modernidade; logo adiante, empenho-me em descrever a popularização da História e o império desta sobre as demais ciências sociais e humanas na atualidade; a terceira série de pensamentos é dedicada a demonstrar as minhas próprias inclinações espirituais, especialmente aquelas que me dirigiram ao conhecimento histórico; por último, procuro refletir sobre o processo de composição do trabalho, ou seja, o meu julgamento sobre a confecção da monografia, a seleção da ordem dos capítulos e suas subdivisões, além das motivações pessoais e meus objetivos.
Espero que me tenha feito compreender, e seja possivelmente útil e objetivo – ainda que estes sejam problemas que não me digam respeito. Boa leitura!



INTRODUÇÃO


É possível que estejamos condenados, que não haja esperança para nós,
para nenhum de nós, mas se assim for, soltemos então um último
e torturante uivo capaz de gelar o sangue nas veias,
um berro de desafio, um grito de guerra! Fora elegias e réquiens!
Fora biografias e histórias, bibliotecas e museus!
Que os mortos comam os mortos. Dancemos nós, os vivos,
à beira da cratera, uma última e agonizante dança.
Mas que seja uma dança!
HENRY MILLER

I


“Clio parece ter adquirido cidadania universal”[1]. Nos últimos anos, houve um apelo mais ou menos geral à história. Desde o século XIX, uma tendência vertiginosa por melhoramentos tecnológicos, pela aceleração e otimização em todos os campos da vida social favoreceu uma percepção do tempo como efemeridade. A constante e “necessária” subjugação da natureza elevou a pressa das coisas. Sentir o tempo ficou muito mais evidente. A impressão de um espaço temporalmente pulverizado expõe dois problemas contraditórios: uma sensação de completa dissolução, de morte instantânea das coisas, proporciona um recuo de “consciência histórica” em favor do presente, de um presente momentâneo gratuitamente concebido; e também, um apego exagerado ao passado como pátria mítica, ou como necessária coerção da imaginação comprimida pelo presente.
A obstrução do desenvolvimento de uma “consciência histórica” é sedimentada em um sólido investimento no instante. A ignorância de todo passado decorrente desta hipertrofia do presente, sob a lógica do massivo capitalismo, exige das pessoas um comportamento desesperador. A dupla face da modernidade, isto é, o capitalismo e a ciência, prometem para o amanhã o que para ontem era exigido uma vida inteira de martírio, sacrifício e privações. O instante torna-se o tempo ideal de sublimação. A percepção móvel e fluída do tempo faz as pessoas vagarem no etéreo, onde toda lembrança de superfície é associada à morte e à decrepitude. O turbulento ritmo que envolve as pessoas, como um vapor supersônico a empurrar-nos, faz a juventude rodopiar pelas ruas como piões frenéticos, superexcitada pela realidade deslizante, como se estivesse precipitando-se sobre um abismo insondável sugada pelo ralo do tempo. Os olhos parecem querer saltar para fora das órbitas, esfomeados pelas imagens que vagueiam vertiginosamente diante de si, tentando inutilmente deglutir os efeitos de suas visões tormentosas. O ser moderno, doente de uma hipertrofia do olhar fugidio, parece ter saído direto de uma fábula para a realidade; os horizontes se esfumaçaram para ele, parecendo deslocar-se num imenso vazio, sobre um infinito fantasmagórico:

Ser moderno é encontrar-se em um ambiente que promete aventura, poder, alegria, crescimento, autotransformação e transformação das coisas em redor – mas ao mesmo tempo ameaça destruir tudo o que temos, tudo o que sabemos, tudo o que somos (...) As pessoas que se encontram em meio a esse turbilhão estão aptas a sentir-se como as primeiras, e talvez as últimas, a passar por isso.[2]
Neste último século, as coisas realmente parecem girar sozinhas. Tudo sugere a ausência de um eixo mais firme; todos os movimentos estão constantemente desafiando as leis da física. Uma força oculta, alguma mola que não se permite distinguir, parece animar as coisas que ameaçam subitamente se despedaçar e se consumir, enquanto as pessoas simplesmente se deixam levar “curtindo”. Sobre este ambiente peculiar, paira um sentimento catastrófico, simultaneamente sublime, delirante e onírico. O presente pulsa, contraindo-se e expandindo-se, indiferente ao passado; o tempo murcha e o passado é expurgado como uma grande dor a ser aliviada, as raízes são cortadas uma após a outra como resquícios deploráveis do vínculo vexatório com a “tradição”. Os inumeráveis e contínuos partos da modernidade, frutos da sua distintiva ânsia criativa, são compensados pelo rápido perecimento de todas as coisas – talvez jamais, em qualquer outra época, vida e morte estiveram tão indissoluvelmente ligados. E este drama de vida e morte parece ocorrer apenas no mais vago território, apreendido somente no terreno da impressão.
A “alma moderna”, entretanto, está cingida entre dois pólos: a sensação de gratuidade e ubiqüidade do presente, do desprendimento com as gerações passadas, e uma confusa procura pela paternidade. A paternidade sendo uma condição passada que constantemente se exerce sobre o presente, que recorda os direitos que lhe cabem e os sacrifícios que lhe são desejáveis. Nesta perspectiva, em que há um mergulho na totalidade do tempo, a absurdidade do presente evapora como um pesadelo distante. O conforto oriundo de se saber não órfão, contudo, gera uma responsabilidade inexistente naquele ser que naufraga no presente e que contempla entorpecido a completa dissolução de todas as coisas: para este a morte não dói tanto. Este sentimento do tempo como um líquido mais viscoso empresta uma aderência maior às coisas e um sentido coletivo se forma em torno destas como uma camada explicativa. O jogo caótico de luz e sombras é substituído por uma iluminação mais sóbria, mais digerível aos olhos. O tempo é sentido com a mesma intensidade, só que apenas com uma outra ênfase. A abertura para o sentimento do coletivo dissipa a ilusão do princípio de individuação e expande os limites do compromisso ético; o favorecimento desta percepção ao convívio social põe sobre os ombros dos homens a pesada obrigação da pintura a fresco, onde é proibida a raspadura.
O apego ao passado, como é perceptível, entretanto, não tem curado o vazio do presente. A inclinação imediata ao passado tem ocorrido justamente por essa sensação de absoluto vácuo. As pessoas parecem querer perseguir os velhos, prostrando-se apressadas a lhes recolher os cabelos que caem ao chão, como experiências que se esvaecem como tardias folhas outonais. Há uma pressa geral para deter o tempo; uma insana impaciência para conter o passado. O lema é não deixar coisa alguma se apagar, sendo o essencial a preservação das pegadas ao assalto do tempo:
Na falta de um presente que entusiasme e perante um futuro inquietante, subsiste o passado, lugar de investimento de uma identidade imaginária através dessas épocas, no entanto próximas, que perdemos para sempre. Essa busca torna-se mais e mais individual, mais local, na falta de um destino coletivo mobilizador. Todos abandonam os tempos extraordinários em troca da memória do quotidiano das pessoas comuns. [3]
Diante de um presente deplorável, a história tornou-se uma espécie de passatempo relaxante onde se investe a esperança na ilusão. O passado aparece como uma pátria mítica onde o homem anseia enraizar-se. O homem moderno refugia-se num sítio ilusório onde a existência recebe um sentido; desesperado, ele afina seus ouvidos para saber de História – interessa-lhe agora o tempo, este drama da dissolução.

II

O universo editorial brasileiro sofre ultimamente de um surto histórico. Atualmente, há um avanço sorrateiro da produção historiográfica voltada especificamente para esses fins. Uma produção acelerada de artigos, numa espécie de “vontade de enxugamento”, tem servido à proliferação dos trabalhos históricos em escala massiva. A compressão vertiginosa do espaço e do tempo impõe uma severa demanda por informações ao mesmo tempo em que as disponibiliza segundo novas práticas e novos instrumentos. Assim, o suor do historiador circula mais livremente e os historiadores parecem novamente enxergar a luz, após décadas de claustro sob o domínio das ciências naturais e matemáticas.
Nas últimas décadas, a História havia se popularizado através da expansão educacional pelos tentáculos do Estado, sempre de mãos dadas com o lucrativo mercado dos livros didáticos. Hoje, o poder público influi diferentemente sobre o ensino histórico: a formação e o delineamento do caráter nacional, o fortalecimento dos princípios nacionais e dos sentimentos patrióticos, que antes nortearam as preocupações do Estado com a História, exprimem uma atmosfera confusa na atual sociedade brasileira: parecem agora sedimentados, inúteis, prejudiciais, ou por simplesmente não ser mais de interesse prioritário, não combinariam com a (des)ordem do mundo atual. A degradação do ensino público, e o conseqüente avanço do sistema privado de educação, sugere que os narradores da História são agora outros, e deixa paulatinamente sua hegemonia quase total. Tal decadência indica uma nova disposição dos “conteúdos históricos”, ou melhor, favorece uma nova percepção do tempo histórico e altera profundamente as prioridades históricas.
A decadência do ensino público, todavia, é insuficiente para explicar a reordenação dos “conteúdos históricos”. Da percepção móvel e fluída da realidade, o homem moderno espera ansiosamente agora tirar lições através da História. Depois do confisco do monopólio do Estado sobre a produção historiográfica e da dissolução das fantasias totalizantes, resultado da ruína das ideologias e dos grandes sistemas teóricos, a História ainda se ressente, de forma geral, de um centro de gravidade. Há uma relação fundamental entre as novas práticas históricas e as estruturas cambaleantes da sociedade moderna. A condição atual do historiador é semelhante a do náufrago que assolado por seu delírio marítimo vago ainda desconfia de todo solo mais firme. A precariedade do historiador, entretanto, permite-lhe ser mais flexível à fugacidade, sendo que lhe cai muito bem a fantasia de camaleão. O poder de camuflar-se, a recente tendência ao mimetismo do historiador, tem inspirado as outras ciências sociais (e humanas) a fazer pactos de solidariedade com a História. O efeito destas recentes alianças ascendeu a História ao trono das ciências sociais.
As ciências sociais sempre permaneceram em constante batalha, instigando-se mutuamente ao combate, saqueando umas às outras. Cada hegemonia, como cada disposição hierárquica, tem sido puramente temporária, precária e instável. Diferentemente das ciências naturais, as complicadas relações humanas transformaram os conceitos das ciências sociais em aparências nebulosas e mestiças. Jamais se obtiveram as escrituras definitivas dos terrenos ocupados por cada uma das ciências sociais – tudo transcorreu sobre fronteiras movediças. A geografia temperada das ciências sociais contrastou com a aridez típica das ciências naturais, habituadas com a oscilação desértica que varia entre dois extremos: o certo e o errado. O tom acinzentado das análises sociais, a claridade duvidosa que paira sobre os estudos sociais, tornou-se uma objeção à esfomeada obtenção do selo da ciência que caracterizou o século XIX.
A História herdou do tempo, da exuberante multiplicidade do vir a ser, a marca da singularidade que durante muito tempo lhe dificultou um lugar no jardim das ciências. Quando o gosto predominante optou pelas regularidades – pedras fundamentais das “ciências positivas” –, a História esteve ameaçada. O caráter caótico e desgovernado do tempo há de ser sempre a objeção dos homens da verdade: a história está sempre a desmenti-los, exibindo fissuras. Na transição para o século XX, houve uma intensa pressão para que a História enquadrasse seu discurso. Nos períodos de crise do discurso histórico, geralmente ocasionados por uma aversão às singularidades, a história tornou-se uma palavra vaga, quase náufraga no interior das demais ciências sociais, como se coubesse a uma grande força externa a tarefa de tomá-la sobre o colo e conduzi-la apropriadamente a seu destino. Esta força externa seria desempenhada pela filosofia ou pela nascente sociologia, a quem caberia imprimir as cores da sabedoria orientadora: direcionar e retalhar os propósitos da História, classificando as individualidades extraídas da história segundo seu monstruoso aparato teórico. O divórcio entre a singularidade e o teorema, portanto, foi o grande dilema enfrentado pela História. A disciplina histórica fez o possível para se afastar dos rótulos teóricos; tentou penosamente distanciar-se da filosofia da história e da metafísica.
Durante certas épocas, como na modernidade, em que a sensação do tempo é extremamente volátil, a História tende a ser intimada a dar seu testemunho. Todas as outras ciências sociais parecem transformar-se em apêndice da disciplina histórica, de maneira que hoje são inconcebíveis uma filosofia não-histórica, uma antropologia e sociologia a-históricas, etc. A História absorveu o discurso das outras ciências sociais, diluindo-as em seu extenso lamaçal. As ciências sociais parecem ter se resumido a fenômenos esparsos do imenso atoleiro histórico, como devessem tributo à História para que lhes fosse concedida permissão para se pronunciar. Esta capacidade antropofágica que fez da História um grande monstro é a responsável pelo triunfo esmagador do método histórico; a consagração da História é o resultado direto de suas propriedades metamórficas, da sua habilidade em insinuar-se nos territórios mais inóspitos, e também igualmente nos mais hospitaleiros. O sucesso estrondoso da História deve-se a sua extrema ubiqüidade, seu lusco-fusco que a permite estar em todos os lugares simultaneamente sem realmente estar em lugar algum, sem fixar seu templo sobre qualquer terreno. A recusa de uma verdade ontológica, o abandono do “Ser”, permitiu uma movediça plasticidade.
Houve, por assim dizer, uma adoção das outras ciências sociais pela História – que exerce em parte seus direitos de paternidade. A tendência cinzenta da História, contudo, a impede de desfrutar amplamente seu imperialismo – a História parece exibir um horror hierárquico, uma vocação democrática ao hibridismo. Com a ascensão da História, percebe-se um certo “ecumenismo epistemológico”. Exceto um ou outro dialeto, um ou outro aspecto regional, hoje todos parecem falar o mesmo idioma. A estrutura babélica das ciências sociais se dissolveu num maravilhoso templo ecumênico, como se um vulcão novamente se precipitasse sobre Pompéia e fundisse todos os desiguais numa mesma paisagem ocre, de modo que amalgamar o mais possível tornou-se o lema. Portanto, não raramente nos espantamos com nossas palavras saindo de bocas estranhas.

III

De qualquer modo, para o bem ou para o mal, estou me tornando um historiador. Isto sempre soou como um enigma para mim. Há alguns anos, eu era um paralítico deprimente. Ocorria-me constantemente que este estado permaneceria indefinidamente; somente me dispunha ao movimento pelo choque de uma enérgica força externa, sacudindo os meus ossos e despertando os meus músculos de seu sono profundo. A matéria sempre foi um dos meus pontos fracos: uma vez colocado diante de formas sólidas e concretas, diante daquela esfera que rudemente denominamos de “física”, despedaçava-me em mil partes. As superfícies sempre foram um obstáculo intransponível para minhas mãos – não para meu pensamento. Na minha maneira estreita de enxergar as coisas, eu não podia conceber a hipótese de que conceitos venerados como “justiça” ou “virtude” proviessem de um ser dotado de intestinos e fígado, que fossem expelidas por um órgão como a boca, e que para este ínfimo evento, fosse necessária uma série de combinações, disposições e hierarquias de células – toda minha psicologia se limitava a partir de um espírito livre e soberano, de uma região abismal de um ser incorpóreo. Portanto, eu sempre dispus de uma terrível habilidade em manipular “essências”.
A pressão e a expectativa disfarçada da minha família fez com que eu pusesse um pesado fardo também às suas costas, exonerando-me das questões práticas da vida. Esta coação dissimulada, aparentemente para o desenvolvimento de uma personalidade independente, de liberdade intelectual, das minhas aspirações no reino do pensamento e no domínio estético, obrigou-me a subitamente sentir necessidade de recompensá-los com o meu talento, presenteando-os com meus frutos; isto cada vez mais se configurava num compromisso religioso: mas como? com que forças? – tudo ainda era demasiado verde e imaturo. A incerteza, neste caso, me consumia por completo e não raramente eu despertava de uma profunda imersão em mim mesmo aos gritos e lamentos, derramando-me em lágrimas até a dissolução absoluta. Em última análise, a questão toda se resumia a me preservar o máximo possível do contato com a “realidade” – natural que minha primeira impressão do passado tenha sido sobre algo morto. Eu possuía uma certa crença na necrofilia dos historiadores. A complexa aversão ao presente, ao que denunciava vida com seus latidos, fez de mim um historiador. Havia uma vontade de contemplar a água parada e profunda contra a agitação e a turbulência que me cercava todos os dias.
Eu jamais senti, entretanto, qualquer inclinação ao furor de toupeira do historiador; nunca pude compreender a necessidade de dispensar imensas energias às autópsias historiográficas. Os esforços dos historiadores sempre me pareceram perder-se no vazio do conhecimento, empregando uma linguagem completamente incompreensível, “uma linguagem esotérica só compreensível para os iniciados em seu próprio culto”[4]. Talvez fosse exatamente isto o que eu procurava: uma linguagem absolutamente particular para a qual a comunicação fosse totalmente acessória – tornar-me eu mesmo uma câmara de isolamento acústico.
Este drama particular do isolamento e da morte se dissipou com a leitura de Nietzsche. Eu soube desde o começo que jamais o abandonaria. Tentei de todas as formas compartilhar este arrebatamento: frustrei-me completamente. Preferi seguir à margem, por um caminho próprio, alheio às associações eclesiásticas que se fundaram em torno do nome de Nietzsche. O delírio vertiginoso entre o aleatório e o necessário, entre o caos e a ordem, entre a barbárie e a cultura – todo o universo bi-polar (ou trans-polar) apolíneo-dionisíaco – extasiou-me. As fronteiras difusas entre o que anteriormente se considerava o avesso e o direito, entre os “opostos”, seduziram-me imediatamente. A precariedade da existência e a paupérrima face do mundo foram então cobertas por uma prodigiosa epiderme de beleza. O lusco-fusco nietzscheano convenceu-me a aceitar o equilíbrio instável da condição humana.

IV

O homem é corda estendida entre o animal e o Super-homem: uma corda sobre um abismo; perigosa travessia, perigoso caminhar; perigoso olhar para trás, perigoso tremer e parar.
O que é de grande valor no homem é ele ser uma ponte e não um fim; o que se pode amar no homem é ele ser uma passagem e um acabamento.
Eu só amo aqueles que sabem viver como que se extinguindo, porque são esses os que atravessam de um para outro lado
[5].

A história que descreve o desenvolvimento do homem ocidental é uma corda que separa o animal e o além-do-homem, ou melhor, que se estende sem, no entanto, separar definitivamente a esfera da animalidade e o domínio do além-do-homem. Este “perigoso olhar para trás”, que se detém em profundidade no tempo, gerou-me uma profunda desconfiança no ofício do historiador, e é o motivo principal para esta monografia: não se trata de um estudo detido e exclusivo, portanto, do problema individual da História, mas de um ensaio geral, e despretensioso, sobre o declínio do Ocidente sob a força do impulso histórico. A indecisão nietzscheana entre o histórico e o a-histórico como apreciações humanas que negociam, ao invés de se excluírem, também é um dos principais objetivos desta investigação, assim como um exercício complexo – e provavelmente infrutífero – de auto-conhecimento.
No primeiro capítulo, tento esboçar o nascimento da história como disciplina. Analiso rapidamente os embates entre as ciências sociais e a luta pela obtenção de um atestado de cientificidade à disciplina histórica. Também persigo o entendimento do equilíbrio de uma história que se alicerçou sobre a construção da “alma nacional” e o estatuto de verdade.
No segundo capítulo, dedicado mais precisamente à filosofia de Nietzsche, tento compreender a emergência da ciência no contexto da “morte de Deus”. Como questões pontuais, aparecem o aprofundamento do niilismo europeu e a “metafísica do artista”, esta última típica do primeiro momento da obra de Nietzsche. Finalmente, concentro-me na crítica da história nietzscheana, salientando três pontos que me parecem fundamentais: a constituição de uma “alma moderna” bipartida entre interior e exterior, o desmedido apreço pelo conhecimento que gera um saber sem fome e o desenvolvimento de uma “história vitalista” em que conceitos anteriormente negativos como destruição, esquecimento e injustiça são afirmados como potências essencialmente criadoras.
***
Esperei por um longo período para dar vazão ao que se segue; deixei-me longas horas sob um silêncio aterrador, esperando algo como um raio que me caísse à cabeça. O duro processo de escrita, acompanhado da desgastante maturação dos pensamentos, ensinaram-me a não mais confiar na “inspiração”, nesse instante miraculoso em que Deus nos tocaria diretamente com as mãos. Cada frase deste trabalho foi talhada com enorme sacrifício e laborioso julgamento, assim como também passou pelo crivo de uma atormentada compulsão estética: isto equivale a dizer que foram precedidas por inúmeros balanços, rejeições e seleções, desfazendo uma ilusória crença de que as palavras surgiriam por si próprias, na descida da correnteza que eu erroneamente pressupunha existir. Da metade em diante, atacou-me um “fatalismo russo”, e deixei-me deitado sobre o gelo aguardando a morte. Pressenti diversas vezes estar à beira de uma congestão cerebral. O árduo esgotamento intelectual me transtornou a ponto de não mais dormir, de modo que não estou ainda completamente recuperado do parto. Espero fazer-me entender senão em tudo, pelo menos no que julgo essencial e não meramente acessório, o que ficará claro ao longo da exposição. Espero ter tido êxito em manter-me a um passo do historiador e do ensaísta, propositadamente em uma região de fronteira e eqüidistância, alternando entre um estilo curial e um outro mais intenso e incandescente.
Basta de falatórios! É tempo de recolher as âncoras e enfim navegar com todas as velas desdobradas...

[1] DOSSE, François. A História em Migalhas: dos Annales à Nova História. São Paulo: Editora Ensaio, 1994, p. 7.
[2] BERMAN, Marshall. Tudo o que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo: Cia. das Letras, 2001.
[3] DOSSE, François. Op. Cit,, p. 15.
[4] MILLER, Henry. A Hora dos Assassinos: um estudo sobre Rimbaud. Porto Alegre: L&PM, 2003.
[5] NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. São Paulo: Martin Claret, 2001, p. 27.