segunda-feira, fevereiro 22, 2010

[sobre o zumbi apaixonado]

"E havia o sexo, em tudo, confundindo todo mundo, que nem a fome. Ele criava saudade, ele criava ambição, competição, ele levava pessoas a deixarem suas casas e inventarem automóveis, naves espaciais e bomba atômicas, quando podiam, em vez disso, ficar sentadas no sofá até morrerem. Paixões animalescas. Necessidades inconscientes. O sexo fazia o mundo girar."


"Isso tudo já era. O sexo, antes uma força tão universal quanto a gravidade, agora é irrelevante. Ambição e saudade não são mais parte da equação. Meu pênis caiu há duas semanas."


o conto é meio mórbido, ainda que seja esperançoso. ele supõe que o amor, a liberdade, a paz, etc., só alcança sua plenitude quando reprimido o impulso sexual no homem. é uma denúncia a céu aberto contra o corpo!... não é gratuita, portanto, a escolha dos zumbis como leit motiv. o definhamento do impulso sexual representa o triunfo do espírito (em detrimento do culto da carne celebrado por ora em cada mônada do nosso universo). a propósito, só uma ruína devastadora - as cidades ardendo, os homens mutilados, vítimas do canibalismo e da autofagia, o retorno ao pó bíblico! - devolverá uma improvável paz ao infatigável e insaciável apetite do homem. e ele cava até o esqueleto, até a medula, para que a verdade possa refulgir intacta, sob uma luz solar. propõe ser a serenidade uma virtude descarnada e etérea. e, tornado pura energia cósmica, descansa em seu leito meio tedioso, com o estômago empanturrado. no pano de fundo, move-o o adágio de que após a tempestade colhe-se a bonança. etc.! mas o homem, permita-me discordar, é uma ponte! ele é o eterno miserável flagelado com a língua de fora. são a incompletude e a ausência suas substâncias mais próprias. não se pode exigir ao homem que não queira, pois seria o mesmo que ordenar ao vento que não vente. reformar o homem é algo delicado. sei lá, esse idílio de anjos castrados é uma história meio fantasmagórica e realmente assustadora; e é uma moléstia antiga esse desejo enraizado no coração dos infelizes e mal logrados por um paraíso pálido e frígido cheio de eunucos bocejando e abanando o nada, e frio cortante de deserto congelando os tímpanos. não creio que reprimir sumariamente o elemento sexual seja uma boa saída. porém, um olhar mais sinistro ao nosso futuro!... devemos ampliar a tensão destrutiva no homem e fomentar um apocalipse pra que a roda seja recolocada em seu ponto de partida. não vejo saída além da catástrofe e da hecatombe. e isso pode acontecer só no âmago do indivíduo – talvez no plano celular! atômico! –, sem implicar numa convulsão social. as cidades não precisam virar uma imensa bola de fogo.

* essa aura edificante esconde aversão e nojo ao homem; sei lá, para o desavisado, isso pode ser romântico, utópico e desejável, o que não altera em absoluto seu caráter misantrópico; é que, desde o domínio das idéias semitas, outro tipo de mundo passou a prevalecer sobre este mundo existente, um mundo, digamos, antinatural e impossível, no qual o melhoramento do homem foi identificado com a sua domesticação e onde a felicidade suprema coincide com a resignação suprema. e esse pensamento torpe peculiar a escravos, que teve sua semente cultivada na Europa primordialmente pelos estóicos, e tornado dominante pelo cristianismo, consolidou-se de uma forma extraordinária, envenenando e corrompendo as almas sadias (com a inoculação da má-consciência), pois os escravos, em todo o lugar, compõem a imensa maioria do estrato social. relatado em pormenores, iluminando com a lâmpada fria da história as baixezas e traiçoeiros golpes de intelecto engendrados para a consecução dessa obra, isso tudo se assemelha a delírio ou a um pesadelo tolo; porém, os artífices desta perfídia, como os anõezinhos de Gulliver, costuraram com firmeza e tenacidade os cordões desta camisa de força mental que aprisiona o nosso ímpeto e nossa valentia dormentes.

segunda-feira, fevereiro 15, 2010

e, logo, literalmente em chamas, faiscando no vento, espremendo os olhos e enxergando tudo meio que através de um plástico enrugado, de uma vidraça, ou de uma cortina translúcida e esbranquiçada, e, sei lá, emergindo do nada, lembrei de uma borboleta com enormes asinhas azuis fosforescentes presa no pára-brisas se movendo como um pêndulo, e que devia estar suspirando, sob a chuva suave e triste, sobre o capô negro do carro deslizando maciamente no horizonte infinito, meio inabarcável, de um promontório tenro regurgitado por uma cratera no céu tipo um ânus enevoado, uma nebulosa de gás, onde, no cimo friolento, mijei faz dez anos tentando enxergar o oceano longe ribombando contra as rochas, no primeiro dia em que me senti repelido pela humanidade, um estrangeiro forçado, ou um exilado inocente; e eu lançava o rosto para fora da pobre janela poeirenta sentindo uma brisa morna se chocar aos meus ouvidos como uma borracha mole e, num estampido mudo, como o estouro abafado plouft de uma rolha, mergulho na mais profunda e fria tremilicante melancolia como um homem-caranguejo engatando marcha-ré no tempo, como apnéia aquática imbecil e suicida no terraço - as derradeiras nuvens no céu dançando antes do céu se escurecer -, ou respirando agitado-ofegante como um piolho semisubmerso como uma mola na água que parece querer afogar na piscina visguenta feito lodo do passado, nadando ao reverso, contra a correnteza devastadora engolindo tudo cheia de espuma rugindo inelutável e definitiva, e olhando pelo retrovisor embaçado da memória só e triste; e o cair da noite cinzenta, no meio da rua suja e ruidosa, me faz lembrar en passant dos porres santos em floripa - santos! santos! santos! - caindo no chão por um facho de luz débil, eclodindo como holofotes se esgueirando no solo, e cenas inesquecíveis como eu e o gio no inverno no canto oculto e escuro de um bar nos conhecendo com os cotovelos escorados numa mesa de madeira horrível, e cinco noites ébrias oníricas consecutivas em que esvaziamos o congelador e todo o estoque de cerveja choca de um bar (assombrando, de verdade, o dono!), e, como um dos piores bêbados trôpegos do mundo, fiquei confinado sem razão no banheiro sufocante de um apartamento, urrando em silêncio, sentado no chão frio e duro, e martelando vagamente a cabeça na parede (os olhos febris e epilépticos-revirados fixos no teto de onde pendia um globo triste fazendo nhec em seu ir-e-vir imutável), etc. e, logo, a alma se enegrece absorvida por um tumor medonho; a visão se turva encoberta por uma neblina espessa que devagar vai se diluindo como um trago de maconha subindo e desaparecendo no céu; e lanço murros ingênuos no vazio como bandini pugilista no mojave esbofeteando a ossuda face do Tempo. e vou adiante, deambulando meio errático, e, num bar, no sopé do morro como um túnel, tomo uma caneta por empréstimo e escrevo sobre esse guardanapo horrível, lastimavelmente sentado, incógnito e quieto no fundo do bar deprimente, esfumaçado e claro como a lua, e escrevo essas idiotices lúgubres e mortas com caligrafia horrível e contendo as lágrimas. "ah, a difícil arte de a tempo ir-se embora!" creio que foi isso que nietzsche - santo! santo! santo! - escreveu sobre essa raça negróide de pessimistas, fornicadores da alma e morimbundos envenenadores da vida da qual eu hoje faço parte. fora lamentações! fora elegias e réquiens! tudo passa como vento pela mente. zunindo! e, sei lá, é meio demoníaco, eu bem sei, e não sei porque me calhou vir isso à tona agora, mas se o diabo possuísse como um arremedo a voz santa da giulia me chamando pra jantar com aquele sonzinho inocente, doce, infantil, santo! na noite úmida e agradável! aquela voz sagrada se esvaindo com o vento! e torturando a minha mente rodopiante de bêbado, que quer girar e cair em delírio... ela está aqui comigo na minha ressaca de bêbado deprimido e desprezível como um anjinho beatífico me segurando pelas pernas fracas, caindo no ar que agora está gelado, com os seus cabelinhos encaracolados macios e perfumados (pelos quais eu deceparia essas mãos que escrevem)!. e, de repente, o gio retorna por um buraco no céu, sentado na rede, balançando-se languidamente como em sonho, na varanda, numa noite suave em que bebíamos um vinho forte e seco! (uma talagada de veneno! bendito seja três vezes!), com uma negra com quem eu estava fodendo na época, e que não lembro o nome, me confessando porque jamais viria a ter um filho ("cara, para você ter um filho, deve-se, pelo menos, ter uma opinião favorável a respeito de si próprio; crer que você seja algo digno de ser reproduzido, repetido; mesmo que o seu filho venha a se converter em algo totalmente diferente do que você é, o que vale é essa lógica meio que de espelho destroçado"). e eu acho que talvez nós devíamos ter forjado a respeito de nós mesmos o que cada um sentia pelo outro, etc., e esse papo meio que fraternal e, no fundo, idiota e infrutífero. ah, dane-se! por que eu estava sentado no meio da rua cuspindo nos próprios pés sob a noite enluarada? (por que eu sempre tenho que chorar quando escrevo? por que eu não posso continuar? nunca. nunca. nunca.) a resignação é chave de uma paz doentia desencarnada. você sai na alegria e na tristeza retorna, eis a verdade.

terça-feira, janeiro 19, 2010

doente carrancudo caminhando cabisbaixo como se o queixo fosse uma bola de bilhar de chumbo reluzindo em um beco frio e solitário sob uma nuvem noturna cinzenta diáfana se dissipando em direção ao sul, e cada carro é uma faísca ondulando como corrente elétrica, relampejando e engolindo a estrada como uma mandíbula enorme, vendo deprimido a velha e triste moradia de um amigo onde, na infância tenra e doce, brincamos com jogos de tabuleiro sobre o piso da sala abaulado, sentindo o cheiro de mofo da madeira podre e molhada exalando das paredes, e o estômago embrulhado com o vômito balouçando em golfadas no vazio com o abominável odor e os jatos sibilantes de fumaça que partiam de um velho e decadente fogão à lenha meio caído, tenebroso, no fundo da cozinha decrépita e nauseabunda empurrando o teto baixo para o alto, e a mãe dele, uma velha gorda muito desengonçada e com um nariz inchado e gordo que lhe parecia ter sido jogado à face como um grande cocô de muar, nos dirigindo caretas réprobas nojentas, risíveis que dava vontade de explodir em uma gargalhada supersônica de fazer voar e sumir as moscas que esfregavam suas patinhas tortas sobre a casca de um enorme queijo roquefort dormindo em cima de um relógio verde que nem musgo tiquetaqueante vertiginoso e inverossímil, e pensar que esse meu amigo faleceu não muito tempo depois disso fazendo sua mãe torcer o grande nariz em prantos como uma torneira cartilaginosa, quando seu caminhão furioso tombou e rolou para dentro do poço eterno, igual a uma tarde quente, em uma primavera rósea e santa, em que caiu nosso carrinho de picolés no abismo íngreme da vila operária que era como a garganta de satã, fazendo sons tétricos e melancólicos como milhares de homens agonizando presos à gosma elástica e ranhenta de satã, degustando picolés incríveis que nunca mais existirão e indo vender os que restaram mais deteriorados e indegustáveis deles que só o louco e besta ubíqua do tobias poderia mesmo comprar, tirando dos bolsos de feltro cada níquel fodido que seu velho pai, bêbado-feliz e ciclópico velho caçador a la mahatma ghandi de avezinhas amestradas, havia espremido de seu surrado e sujo bolso com aquele olhar úmido, delirante e santo, que só os pais têm; e agora eu estava verdadeiramente amuado e caído como um anjo, pesando uma tonelada invisível, vendo tudo meio embaciado como numa viseira de escafandro, ouvindo um murmúrio blorgh & blrurgh ribombando e distantes bolhas maleáveis como gelatina saltitando no vazio, como uma esponja-cristal voadora mas submarina, e cada ridícula pedra levantada naquela cidade só me falava de morte e de dissolução, porque cada pedrinha foi minha quando criança, e elas não foram só coisas minhas, coisas que eu podia agarrar com as mãos e quando quisesse arremessá-las fora, tudo era eu, tudo era um fragmento e extensão sagrada da minha infinitesimal essência de aranha que era a mesma de deus; lembrando das manhãs de invernos congelantes, enquanto ía com o pulmão pleno de ar pra escola, passando na frente da casa dele, numa calçada cheia de tijolos esfumaçados lisos como sabão molhado, soltando baforadas de vapor que subiam pro céu cinzento se dispersando e esvoaçando como em um sonho, e ali na frente, no chão, por conta da poeira de gelo, era possível deslizar e patinar em cima dele, e ver o sol pálido se levantando bem na minha cara rompendo o nevoeiro pelo meio, abrindo um imenso buraco no centro pustulento do meu fígado como uma grande lanterna iluminando o subterrâneo da alma cheia como um pão, e tudo ao redor sendo esvaziado do crânio de deus como uma tragada de shisa profunda. ah, e quanto mais eu poderia cantar com essa boca de sapo! inundando de lama essas reminiscências fosforescentes como algas verdes e fosforescentes tremulando em vagalhões nas cristas tristes e soturnas das ondas do oceano, nessas noites cuspidas vivas pelo grande vento e que morrem em um lamento sorrateiro, em um uivo silencioso, e que aparecem refletidas nas lentes de uns óculos inesquecíveis que se apagaram para sempre quando eu era só uma criança; e um homem meio sorumbático com uns olhos cinzas e gélidos apoiado no espaldar desprezível da janela afundada numa luz azul fraquinha acompanha receoso e literalmente borrado o fluído de lesma pensante que desliza e emana como gás pelos meus ouvidos e se funde com o ar denso flutuante soprado como uma flauta através de uma fissura no chão rachado, ávido e insaciável, se abrindo sob os pés e exibindo pra fora os seus dentes escarlates sangrentos que durante eras abocanham homens, plantas, aranhas, elfos, arranha-céus, e tudo o mais, e que para nada vão permitir remissão, para nada concederão trégua, com sua máquina devoradora de mastigar coisas e idéias, pondo fim e esmagando o desfilar oco e desolador de milhares de gerações perdidas, e que arremessará num imenso cesto de lixo, depois de mastigá-los como chicletes, esses supostos anjos esqueléticos e anêmicos com cara de defunto nos bares, brandindo suas caveiras suspensas por um instante da grande centrífuga eterna como a bolinha girando no ar sobre a roleta, embaixo, aguardando com seu estômago flácido de baleia pronto para triturar e moer os seus ossos virando uma pasta pardacenda, etc, etc, etc, e, de repente, galgando os quarteirões quadrados de cem metros por cem metros, como um sonho de gêometra, cada edificação me relatava uma história de dor e êxtase, surgindo de uma fenda em um céu de cartolina parda, por uma mão enluvada avulsa sem braço, e cada célula escura como carvão bruto era dotada de eletricidade brilhando e espoucando no céu como uma estrela, atravessando e arrebentando o tempo através de uma membrana translúcida fina tipo uma placenta, como um plástico viscoso enrolado na cabeça de um garoto que se suicidou (cuja infelicidade me foi contada para amenizar o sentimento impronunciável e indescritível da morte do gio que está sempre ardendo e sangrando o meu coração)
etc.

sábado, maio 30, 2009

[rosário infantil]

(num sonho iluminado) com os olhos semicerrados pelo estreito túnel, a passarela que une a ilha ao resto do continente, de onde se podia inalar merda e sentir o cheiro do oceano, lendo nos lados meio triste os enigmas e diagramas regurgitados no muro, as exortações excitadas estéreis e ingênuas à revolução social impossível, as trêmulas e desesperadas e ridículas declarações de amor (caquéticas!), e tudo mais um pouco sem esmero, etc., toda esta rebeldia ingênua e suicida da juventude – e romântica! –; e onde é impossível não desejar cair no oceano como um alfinete e desaparecer nas profundezas, inundado de água por todos os poros, e tentar, lá embaixo, ver os rostos de todos os entes queridos que viraram pó e dos fantasmas do passado que nos mordem a alma com seus dentes de chumbo, e falar com eles num idioma feito de bolhas e gestos lentos estourando contra o turbilhão de ondas submarinas, um balbuciar mímico morto no silêncio em meio ao caos espectral, e dizer tudo o que devíamos ter dito alto enquanto ainda estavam vivos e respirando, e recitar um tomo inteiro de poesias desesperadas que estão ardendo confinadas nos nossos cérebros, e jogar pra fora num ruído inaudível todo o lixo degradável e podre que está nos comendo como um câncer, com um grito tonitruante e potente como um dínamo estrelado que vai morrer no silêncio puro, um grito que está enterrado como uma medula seca em nossos ossos, que não liberta, porém, alivia e esfria um pouco o caldeirão borbulhante e insuportável do nosso vazio, forjando uma frase perfeita atrás de outra, vê-las explodindo e se chocando contra o papel como uma bola de fogo, destampando o cérebro debaixo da sombra de uma nuvem cinzenta e fria, e ver a terra devorando e engolindo os arranha-céus com sua garganta sagrada, e o vento devastando os monumentos e estátuas e símbolos arcaicos da nossa civilização espiritualmente atrofiada e mórbida, etc., uma história própria que parecesse digna de ser escrita e conhecida, lida, incorporada, repetida, copiada, espelhada, refletida, por todos os homens e por todos os animais e vermes rastejantes que oscitam sob o sol, suprimindo toda a suspeita sobre o caráter horrendo e a fealdade do mundo, uma idéia que está caindo no esgoto; e descortinar a barreira de ferro que nos impede de dar o próximo passo pra frente, e levar esta mensagem ao mais recôndito buraco, repartir o pão com os huguenotes, os persas, os sumérios, os amonitas, os eleatas (etc.), em todas as épocas, uma foda transtemporal entre os povos, escrever na luz azul o surgimento de uma palavra, o fim de uma era de entorpecimento, o levantar da cama do século XX(I), o banho santo de um vulcão furioso, como um rio de sêmen vivificante, fazendo ressoar como música no ar aquela matéria ígnea morta e inerte, preguiçosa e lânguida como barro no fundo do ser, jorrando como um gêiser essa porra seca da mente, e andando com os pés cheios de sangue sobre o chão nevado, fissurando e derretendo a camada de gelo fino que se alonga como um lago cristalizado no meio do deserto, e o sonho de ser um homem ilustre escoando pela privada como um cocô obsoleto, fluindo, desaparecendo, deslizando para dentro da Criação, como se estivesse se fundindo ao plano, à natureza, etc. e a ísis surgiria de dentro do crânio de um arcanjo exibindo seu torso desnudo e serpenteando seus braços como um deus indiano içado do Ganges esparramando amor sobre a terra, borrifando jovialidade e sarcasmo de dentro dos seus pulmões, como quando eu fecho os olhos bêbado sentado no chão cheirando flores, e o gio cantando tristemente o kaddish em cima de um túmulo sórdido (o calor indescritível subindo dos esquifes repletos de ossos esquecidos) - e cimento velho rachado e fosco -, com arbustos sujos da altura de um homem, saltitando nas lápides, lamentando os irmãos e indigentes perdidos em manicômios, sofrendo choques elétricos, amarrados por tiras de couro em leitos deprimentes, doentes, caídos em desgraça, derrotados, murmurando para o teto no topo de seus cárceres um sopro de clemência, de serenidade, uma pausa na máquina de vomitar fatos, tudo isto para poder contemplar a obra imóvel e eterna que paira na consciência do Buda, e vendo o leo arrancar do seu ânus fumegante um poema latino remoto (com seu hálito de vinho barato adquirido a duras penas com seu ordenado miserável de guardião dos livros) discorrendo sobre nossa ruína moral, nossa desordem política, a decadência de nossa arte, e nossas profecias e sonhos impuros virando excrementos no tempo, soterrados nus na torrente dos fatos que se sucedem e rodopiam vertiginosamente como um tipo de droga paralisante penetrando nas narinas, e mitigando o frio sentimento de perplexidade do indivíduo, só no centro da maquinaria como um pernilongo na cerveja choca, perdido no meio da fumaça das fábricas, subindo ao céu plúmbeo desmaiado do inverno, vendo a triste estrela do oriente calmamente se apagar e desaparecer ao raiar da manhã, e descendo, na sombra das aléias verdejantes, em um rio miserável que ruge e corta em dois pedaços grandes a cidade onde eu nasci, assombrando-me para sempre, e onde o joca empunhava um cajado como um pastor velho e sábio ou um dos doidos desbravadores e assassinos de civilizações meio hernán cortez, e nós o seguíamos peregrinando e roubando frutas, escalando montes cheios de terra dura que grudava nas botas só para pôr os olhos cansados no panorama pálido de inverno da nossa pobre cidade, ver os velhos esqueléticos deslizarem como formigas para o interior dos bares fedidos, como magnetismo amaldiçoado, escarrando no solo pedrinhas duras oriundas dos seus pulmões e delirando ao beberem os seus venenos para o fígado, morrendo como moscas eletrocutadas em uma luz púrpura; e, no topo gelado dos montes, víamos coelhinhos brancos como as nuvenzinhas do céu voarem e submergirem nos arbustos e se enlearem nas sebes densas soltando guinchos suaves que morriam no espaço e confluíam em espirais invisíveis ao peito de Buda, e ficávamos na névoa suspirando e esperando o orvalho cobrir as folhas ao entardecer, com a mente conectada ao cosmos contemplando o sol do crepúsculo definhar fracamente, até descermos o monte com o frio penetrando nossos ossos e o sangue congelando nas veias; e no início da noite, indo contra o vento cortante para o casarão obscuro caindo aos pedaços, onde, na soleira da porta, pelo vidro embaçado, eu enxergava mamãe exausta preparando o jantar, decifrando-a no meio do vapor quente espargido da frigideira, com os olhos brilhantes, recebendo-me de soslaio com afetuosidade e compreensão, enquanto papai cofiava o bigode negro e espesso ante um cálice de vinho, com o pensamento longe, num cômodo mal iluminado pelo lustre sujo e empoeirado – ah, prenhe de futuro! o futuro se abrindo numa torrente vertiginosa; e o único empenho que se exigia de mim, o mais difícil e crucial de todos, consistia em liberar os meus impulsos, dar asas aos meus cavalos, e fundarem, no meio desse caos, a base do comando perfeito da natureza, da profundis natura, e aguardar com paciência, como um sortilégio, o meu justo lugar na escala dos seres; afastar-me, de todos os modos, de subordinar o meu destino, de apagar os meus dotes, de sufocar os meus anseios, em nome de qualquer idéia, de qualquer instituição, de qualquer homem: eu só obedeceria ao que a natureza ditasse como um X guiado pelo cheiro. e, na noite profunda, titia tomada pelo câncer, ofegando e murchando, e nós prostrados ao pé do seu leito, orando e rogando na penumbra para que fosse poupada do sofrimento e vivesse em paz, com os olhos fundos e o cenho franzido, invocando a clemência mais profunda, a piedade mais doce e sincera que um coração poderá conceber. em vão! deus é uma calopsita defecando no sofá; é um viciado apertando um baseado à meia luz – vibrando o monocórdio drama da aniquilação suprema com seus dentes amarelos: pobre homem, com a boca repleta de espuma, rodando como um cão ao redor do próprio rabo, caindo na desgraça, entoando só o urro dos moribundos.

terça-feira, março 17, 2009

[ísis]

eu estava sentado em um caminho de madeira refrescando os pés na água, olhando as gaivotas planarem em vôos rasantes sobre a lagoa calma e imóvel, e pensando por que diabos estava eu ali tão longe e tão remotamente só. enxuguei os pés para calçar os sapatos e levantei esfregando as minhas calças que estavam imundas e ásperas. era uma calça jeans de um azul claro velha e gasta. o chão estava totalmente salpicado de areia e formava uma enseada meio inverossímil em plena margem da rua e lhe cingia um contorno delicadamente fantástico. errei para cima e para baixo um pouco perdido e estonteado à procura de um bar no qual pudesse permanecer anônimo e sem ser perturbado por ninguém. escolhi um bar amarelo com uma mesinha vaga no fundo que, a despeito de ser bem movimentado, jazia completamente escuro e apagado entre uma série de outros bares deprimentes com letreiros em gás neon. suas paredes ainda cheiravam a tinta fresca. percorri o cardápio com os olhos, entretanto, estava alheio e sem fome e só desejava beber um bom trago. deixei o pensamento voar longe e desconectar-se da realidade; os braços pendiam, caídos, mortos e pesados sobre a mesa dura e fria; o olhar fixo e opaco, concentrando num ponto longínqüo. o gio veio de bicicleta. logo, ficamos ébrios e meio deprimidos. refletimos melancolicamente acerca de nossas vidas inúteis; sobre o destino ridículo e mesmo incompreensível que tivemos, em que fomos ultrapassados e superados, em todos os quesitos, por seres que, segundo nosso juízo, eram ínfimos e repugnantes, cujo sucesso era obra da boa consciência da sociedade, um tipo de prêmio à moralidade. nossos sonhos tinham morrido! sim, nos convertemos em párias e canalhas, desprezando e cuspindo na cara da sociedade - num gênero só para raros.
a noite desceu por completo. tínhamos que voltar para a costa e o próximo barco era o último. andamos até o barco enfrentando as luzes esbranquiçadas dos carros e, com medo de perdê-lo, chegamos uma hora adiantados. sob os postes, com uma sonolenta luz alaranjada, erguia-se o píer. lá havia toda a sorte imaginável de desajustados esperando para serem transportados para casa: trabalhadores fedendo à peixe; mulheres levando no colo criancinhas pálidas e inquietas, jovens selvagens loucos para vomitar, e velhos com o tédio colado na fronte, etc. exalava um fétido e insuportável odor de algas. a superfície da água parecia grossa e pardacenta. dane-se! era o único meio de retornarmos. a alternativa restante consistia em caminhar quatro quilômetros por uma vereda aberta na margem lateral da lagoa (o que, por evidência, rechaçamos de imediato). assim, o gio encostou a bicicleta em um muro e adormeceu. eu pedi para uma senhora negra que me parecia tristemente simpática e humilde para nos avisar no momento em que o barco fosse zarpar. enquanto isso, tive um excelente sono no chão gelado. a esta altura, o calor havia se dissipado e o ar era macio e azulado. a senhora negra nos alertou e subimos ao teto do barco onde se amarravam as bicicletas. abaixo, sob o teto ou na borda do barco, todos se espremiam sentados como pulgas. a noite estava incrivelmente agradável e sem nuvens. o reflexo da lua boiava na água tênue e plácida da lagoa delimitando a área observável na escuridão. na orla havia raras casas penetrando o breu espesso com uma pequena lâmpada opaca na floresta densa. sonhávamos olhando pro céu frio, deitados com as costas no teto de madeira do barco, quase a levitar suspensos por uma cama de fumaça, inalando um aroma de incenso que boiava em círculos, expelidos por turíbulos de prata que oscilavam e balouçavam-se sobre os nossos crânios, em um silêncio pavoroso unicamente interrompido pelo choque constante das ondas. e posso jurar que a ísis estava lá, em algum lugar do céu, na noite estrelada, como um arcanjo iluminado derramando seu amor e sua graça em cascatas que jorravam de dentro dos seus olhos e desciam direto ao nosso pobre chão rachado. então subitamente o gio saltou produzindo um estrondo no assoalho e com uma manobra brusca fez o barco parar. e, quando descemos no posto 8, ermo e desolado, com um sentimento estranho e inconcebível de solidão e plenitude, na rampa do trapiche, ou monte acima, no barro e na trilha fechada, eu ainda sentia que ísis estava ali sussurrando e lambendo o meu ouvido com seu hálito doce e perfumado.

sexta-feira, março 13, 2009

[avant la haine]

- Dans Paris [Em Paris], do diretor Christophe Honoré. -


isto é ao que eu chamo de Arte!... a raras obras posso classificar o filme como pretexto à uma só cena; como um contexto pálido composto para o apogeu comovente condensado em um intervalo. uma escalada aos céus! não há como não arrepiar os pêlos! - e não soltar uma lágrima cálida. eis um filme que me surgiu ao acaso: e para o qual permaneci totalmente despreparado. uma fortuna aleatória! quando rumei hoje cedo para o depósito, um pouco triste e melancólico, sentado em um ônibus sujo e recitando mantras, parecia ver alguém através dos vidros empoeirados, do outro lado da linha de telefone imaginária, sob os delicados vapores da manhã encobrindo o sol pungente, diluindo as nuvens baixas, recordando essas imagens inexprimíveis que parecem espargir sonhos fumegantes, embriagar a mente com gim - a arte é a bela petrificação da alma -, e que têm o mesmo som ao de uma noite em que minhas lágrimas frias caíam em um copo cheio d'água na penumbra. só o amor possui tal esperança sombria: que subtrai o horror inevitável pelo sentimento sublime; só o amor é esse puro heroísmo ante a tragédia, e antepõe a paixão ao inelutável, levando no dorso a bela morte. eu sussurava non, je t'embrasse et ça passe... - perdido no zumbido dos automóveis - e um murmúrio morria no silêncio do ar tépido (como um trem penetrando um túnel).

segunda-feira, janeiro 26, 2009

[mi próximo movimiento]

"voy a subir al techo a ver,
a mirar el desastre
bajo la luz de la luna gigante.
e
llos lloran abajo del árbol,
arriba del árbol,
detrás del árbol
tuve miedo pero ya se fue.
a
hora estoy arriba de mi casa con un rifle.
haré mi próximo movimiento."
* El Mato A Un Policía Motorizado


é impressionante a força e o lirismo emanados por "El Mato...". uma música como esta perturba qualquer indivíduo e o deixa estático e sem palavras. quando eu cruzava os antros de porto alegre meio bêbado jamais tive um vislumbre propriamente profundo inspirado pelas bandinhas tristes que aqui são ovacionadas. no extremo, permanecia imóvel em contemplação, deprimido e decepcionado; porém, sem mergulhos e sem poesia, seco e literalmente sugado por um aspirador de serragem. com os argentinos do "El Mato..." há algo completamente diferente! - como se eu fosse lançado no fundo de um oceano - e de lá pudesse enxergar algo real sobre as coisas, rodeado de um silêncio profundo e absoluto, vivendo só na mente, ou sutilmente interrompido por um zumbido distante, longínqüo, como o som de um diapasão oxidado, um ruído contínuo e abafado vindo de fora do tempo, ou, sei lá, de um local ermo e perdido que existe, sempre existiu, desde a eternidade e os primeiros símios, mas para o qual estamos terrivelmente surdos. acho que é uma sensação de harmonia total. eu sinto que sou um átomo dormente reduzido a pó, e, enterrado no colchão, eu miro o teto do meu quarto, quase levitando, em um estado flutuante e esplêndido, e posso enxergar através dele, atravessar todos os apartamentos assentados sobre o meu teto, e penetrar todo o firmamento e ir além dele, caindo com as estrelas; ou então eu observo inerte a paisagem pela janela e tudo fica subitamente escuro e pacífico, o breu profundo mais aprazível que alguém puder imaginar, e posso ficar mastigando por dias inteiros esta goma do nada, e soprando bolhas invisíveis que explodem no ar e emitem um ploc murmurante. eu não sei se isto é elevado, divino, ou qualquer coisa que o valha, mas particularmente creio que seja a experiência mais agradável que eu já tive com a arte depois de sonhar com nietzsche dançando com deus.