segunda-feira, fevereiro 22, 2010

[sobre o zumbi apaixonado]

"E havia o sexo, em tudo, confundindo todo mundo, que nem a fome. Ele criava saudade, ele criava ambição, competição, ele levava pessoas a deixarem suas casas e inventarem automóveis, naves espaciais e bomba atômicas, quando podiam, em vez disso, ficar sentadas no sofá até morrerem. Paixões animalescas. Necessidades inconscientes. O sexo fazia o mundo girar."


"Isso tudo já era. O sexo, antes uma força tão universal quanto a gravidade, agora é irrelevante. Ambição e saudade não são mais parte da equação. Meu pênis caiu há duas semanas."


o conto é meio mórbido, ainda que seja esperançoso. ele supõe que o amor, a liberdade, a paz, etc., só alcança sua plenitude quando reprimido o impulso sexual no homem. é uma denúncia a céu aberto contra o corpo!... não é gratuita, portanto, a escolha dos zumbis como leit motiv. o definhamento do impulso sexual representa o triunfo do espírito (em detrimento do culto da carne celebrado por ora em cada mônada do nosso universo). a propósito, só uma ruína devastadora - as cidades ardendo, os homens mutilados, vítimas do canibalismo e da autofagia, o retorno ao pó bíblico! - devolverá uma improvável paz ao infatigável e insaciável apetite do homem. e ele cava até o esqueleto, até a medula, para que a verdade possa refulgir intacta, sob uma luz solar. propõe ser a serenidade uma virtude descarnada e etérea. e, tornado pura energia cósmica, descansa em seu leito meio tedioso, com o estômago empanturrado. no pano de fundo, move-o o adágio de que após a tempestade colhe-se a bonança. etc.! mas o homem, permita-me discordar, é uma ponte! ele é o eterno miserável flagelado com a língua de fora. são a incompletude e a ausência suas substâncias mais próprias. não se pode exigir ao homem que não queira, pois seria o mesmo que ordenar ao vento que não vente. reformar o homem é algo delicado. sei lá, esse idílio de anjos castrados é uma história meio fantasmagórica e realmente assustadora; e é uma moléstia antiga esse desejo enraizado no coração dos infelizes e mal logrados por um paraíso pálido e frígido cheio de eunucos bocejando e abanando o nada, e frio cortante de deserto congelando os tímpanos. não creio que reprimir sumariamente o elemento sexual seja uma boa saída. porém, um olhar mais sinistro ao nosso futuro!... devemos ampliar a tensão destrutiva no homem e fomentar um apocalipse pra que a roda seja recolocada em seu ponto de partida. não vejo saída além da catástrofe e da hecatombe. e isso pode acontecer só no âmago do indivíduo – talvez no plano celular! atômico! –, sem implicar numa convulsão social. as cidades não precisam virar uma imensa bola de fogo.

* essa aura edificante esconde aversão e nojo ao homem; sei lá, para o desavisado, isso pode ser romântico, utópico e desejável, o que não altera em absoluto seu caráter misantrópico; é que, desde o domínio das idéias semitas, outro tipo de mundo passou a prevalecer sobre este mundo existente, um mundo, digamos, antinatural e impossível, no qual o melhoramento do homem foi identificado com a sua domesticação e onde a felicidade suprema coincide com a resignação suprema. e esse pensamento torpe peculiar a escravos, que teve sua semente cultivada na Europa primordialmente pelos estóicos, e tornado dominante pelo cristianismo, consolidou-se de uma forma extraordinária, envenenando e corrompendo as almas sadias (com a inoculação da má-consciência), pois os escravos, em todo o lugar, compõem a imensa maioria do estrato social. relatado em pormenores, iluminando com a lâmpada fria da história as baixezas e traiçoeiros golpes de intelecto engendrados para a consecução dessa obra, isso tudo se assemelha a delírio ou a um pesadelo tolo; porém, os artífices desta perfídia, como os anõezinhos de Gulliver, costuraram com firmeza e tenacidade os cordões desta camisa de força mental que aprisiona o nosso ímpeto e nossa valentia dormentes.

segunda-feira, fevereiro 15, 2010

e, logo, literalmente em chamas, faiscando no vento, espremendo os olhos e enxergando tudo meio que através de um plástico enrugado, de uma vidraça, ou de uma cortina translúcida e esbranquiçada, e, sei lá, emergindo do nada, lembrei de uma borboleta com enormes asinhas azuis fosforescentes presa no pára-brisas se movendo como um pêndulo, e que devia estar suspirando, sob a chuva suave e triste, sobre o capô negro do carro deslizando maciamente no horizonte infinito, meio inabarcável, de um promontório tenro regurgitado por uma cratera no céu tipo um ânus enevoado, uma nebulosa de gás, onde, no cimo friolento, mijei faz dez anos tentando enxergar o oceano longe ribombando contra as rochas, no primeiro dia em que me senti repelido pela humanidade, um estrangeiro forçado, ou um exilado inocente; e eu lançava o rosto para fora da pobre janela poeirenta sentindo uma brisa morna se chocar aos meus ouvidos como uma borracha mole e, num estampido mudo, como o estouro abafado plouft de uma rolha, mergulho na mais profunda e fria tremilicante melancolia como um homem-caranguejo engatando marcha-ré no tempo, como apnéia aquática imbecil e suicida no terraço - as derradeiras nuvens no céu dançando antes do céu se escurecer -, ou respirando agitado-ofegante como um piolho semisubmerso como uma mola na água que parece querer afogar na piscina visguenta feito lodo do passado, nadando ao reverso, contra a correnteza devastadora engolindo tudo cheia de espuma rugindo inelutável e definitiva, e olhando pelo retrovisor embaçado da memória só e triste; e o cair da noite cinzenta, no meio da rua suja e ruidosa, me faz lembrar en passant dos porres santos em floripa - santos! santos! santos! - caindo no chão por um facho de luz débil, eclodindo como holofotes se esgueirando no solo, e cenas inesquecíveis como eu e o gio no inverno no canto oculto e escuro de um bar nos conhecendo com os cotovelos escorados numa mesa de madeira horrível, e cinco noites ébrias oníricas consecutivas em que esvaziamos o congelador e todo o estoque de cerveja choca de um bar (assombrando, de verdade, o dono!), e, como um dos piores bêbados trôpegos do mundo, fiquei confinado sem razão no banheiro sufocante de um apartamento, urrando em silêncio, sentado no chão frio e duro, e martelando vagamente a cabeça na parede (os olhos febris e epilépticos-revirados fixos no teto de onde pendia um globo triste fazendo nhec em seu ir-e-vir imutável), etc. e, logo, a alma se enegrece absorvida por um tumor medonho; a visão se turva encoberta por uma neblina espessa que devagar vai se diluindo como um trago de maconha subindo e desaparecendo no céu; e lanço murros ingênuos no vazio como bandini pugilista no mojave esbofeteando a ossuda face do Tempo. e vou adiante, deambulando meio errático, e, num bar, no sopé do morro como um túnel, tomo uma caneta por empréstimo e escrevo sobre esse guardanapo horrível, lastimavelmente sentado, incógnito e quieto no fundo do bar deprimente, esfumaçado e claro como a lua, e escrevo essas idiotices lúgubres e mortas com caligrafia horrível e contendo as lágrimas. "ah, a difícil arte de a tempo ir-se embora!" creio que foi isso que nietzsche - santo! santo! santo! - escreveu sobre essa raça negróide de pessimistas, fornicadores da alma e morimbundos envenenadores da vida da qual eu hoje faço parte. fora lamentações! fora elegias e réquiens! tudo passa como vento pela mente. zunindo! e, sei lá, é meio demoníaco, eu bem sei, e não sei porque me calhou vir isso à tona agora, mas se o diabo possuísse como um arremedo a voz santa da giulia me chamando pra jantar com aquele sonzinho inocente, doce, infantil, santo! na noite úmida e agradável! aquela voz sagrada se esvaindo com o vento! e torturando a minha mente rodopiante de bêbado, que quer girar e cair em delírio... ela está aqui comigo na minha ressaca de bêbado deprimido e desprezível como um anjinho beatífico me segurando pelas pernas fracas, caindo no ar que agora está gelado, com os seus cabelinhos encaracolados macios e perfumados (pelos quais eu deceparia essas mãos que escrevem)!. e, de repente, o gio retorna por um buraco no céu, sentado na rede, balançando-se languidamente como em sonho, na varanda, numa noite suave em que bebíamos um vinho forte e seco! (uma talagada de veneno! bendito seja três vezes!), com uma negra com quem eu estava fodendo na época, e que não lembro o nome, me confessando porque jamais viria a ter um filho ("cara, para você ter um filho, deve-se, pelo menos, ter uma opinião favorável a respeito de si próprio; crer que você seja algo digno de ser reproduzido, repetido; mesmo que o seu filho venha a se converter em algo totalmente diferente do que você é, o que vale é essa lógica meio que de espelho destroçado"). e eu acho que talvez nós devíamos ter forjado a respeito de nós mesmos o que cada um sentia pelo outro, etc., e esse papo meio que fraternal e, no fundo, idiota e infrutífero. ah, dane-se! por que eu estava sentado no meio da rua cuspindo nos próprios pés sob a noite enluarada? (por que eu sempre tenho que chorar quando escrevo? por que eu não posso continuar? nunca. nunca. nunca.) a resignação é chave de uma paz doentia desencarnada. você sai na alegria e na tristeza retorna, eis a verdade.

terça-feira, janeiro 19, 2010

doente carrancudo caminhando cabisbaixo como se o queixo fosse uma bola de bilhar de chumbo reluzindo em um beco frio e solitário sob uma nuvem noturna cinzenta diáfana se dissipando em direção ao sul, e cada carro é uma faísca ondulando como corrente elétrica, relampejando e engolindo a estrada como uma mandíbula enorme, vendo deprimido a velha e triste moradia de um amigo onde, na infância tenra e doce, brincamos com jogos de tabuleiro sobre o piso da sala abaulado, sentindo o cheiro de mofo da madeira podre e molhada exalando das paredes, e o estômago embrulhado com o vômito balouçando em golfadas no vazio com o abominável odor e os jatos sibilantes de fumaça que partiam de um velho e decadente fogão à lenha meio caído, tenebroso, no fundo da cozinha decrépita e nauseabunda empurrando o teto baixo para o alto, e a mãe dele, uma velha gorda muito desengonçada e com um nariz inchado e gordo que lhe parecia ter sido jogado à face como um grande cocô de muar, nos dirigindo caretas réprobas nojentas, risíveis que dava vontade de explodir em uma gargalhada supersônica de fazer voar e sumir as moscas que esfregavam suas patinhas tortas sobre a casca de um enorme queijo roquefort dormindo em cima de um relógio verde que nem musgo tiquetaqueante vertiginoso e inverossímil, e pensar que esse meu amigo faleceu não muito tempo depois disso fazendo sua mãe torcer o grande nariz em prantos como uma torneira cartilaginosa, quando seu caminhão furioso tombou e rolou para dentro do poço eterno, igual a uma tarde quente, em uma primavera rósea e santa, em que caiu nosso carrinho de picolés no abismo íngreme da vila operária que era como a garganta de satã, fazendo sons tétricos e melancólicos como milhares de homens agonizando presos à gosma elástica e ranhenta de satã, degustando picolés incríveis que nunca mais existirão e indo vender os que restaram mais deteriorados e indegustáveis deles que só o louco e besta ubíqua do tobias poderia mesmo comprar, tirando dos bolsos de feltro cada níquel fodido que seu velho pai, bêbado-feliz e ciclópico velho caçador a la mahatma ghandi de avezinhas amestradas, havia espremido de seu surrado e sujo bolso com aquele olhar úmido, delirante e santo, que só os pais têm; e agora eu estava verdadeiramente amuado e caído como um anjo, pesando uma tonelada invisível, vendo tudo meio embaciado como numa viseira de escafandro, ouvindo um murmúrio blorgh & blrurgh ribombando e distantes bolhas maleáveis como gelatina saltitando no vazio, como uma esponja-cristal voadora mas submarina, e cada ridícula pedra levantada naquela cidade só me falava de morte e de dissolução, porque cada pedrinha foi minha quando criança, e elas não foram só coisas minhas, coisas que eu podia agarrar com as mãos e quando quisesse arremessá-las fora, tudo era eu, tudo era um fragmento e extensão sagrada da minha infinitesimal essência de aranha que era a mesma de deus; lembrando das manhãs de invernos congelantes, enquanto ía com o pulmão pleno de ar pra escola, passando na frente da casa dele, numa calçada cheia de tijolos esfumaçados lisos como sabão molhado, soltando baforadas de vapor que subiam pro céu cinzento se dispersando e esvoaçando como em um sonho, e ali na frente, no chão, por conta da poeira de gelo, era possível deslizar e patinar em cima dele, e ver o sol pálido se levantando bem na minha cara rompendo o nevoeiro pelo meio, abrindo um imenso buraco no centro pustulento do meu fígado como uma grande lanterna iluminando o subterrâneo da alma cheia como um pão, e tudo ao redor sendo esvaziado do crânio de deus como uma tragada de shisa profunda. ah, e quanto mais eu poderia cantar com essa boca de sapo! inundando de lama essas reminiscências fosforescentes como algas verdes e fosforescentes tremulando em vagalhões nas cristas tristes e soturnas das ondas do oceano, nessas noites cuspidas vivas pelo grande vento e que morrem em um lamento sorrateiro, em um uivo silencioso, e que aparecem refletidas nas lentes de uns óculos inesquecíveis que se apagaram para sempre quando eu era só uma criança; e um homem meio sorumbático com uns olhos cinzas e gélidos apoiado no espaldar desprezível da janela afundada numa luz azul fraquinha acompanha receoso e literalmente borrado o fluído de lesma pensante que desliza e emana como gás pelos meus ouvidos e se funde com o ar denso flutuante soprado como uma flauta através de uma fissura no chão rachado, ávido e insaciável, se abrindo sob os pés e exibindo pra fora os seus dentes escarlates sangrentos que durante eras abocanham homens, plantas, aranhas, elfos, arranha-céus, e tudo o mais, e que para nada vão permitir remissão, para nada concederão trégua, com sua máquina devoradora de mastigar coisas e idéias, pondo fim e esmagando o desfilar oco e desolador de milhares de gerações perdidas, e que arremessará num imenso cesto de lixo, depois de mastigá-los como chicletes, esses supostos anjos esqueléticos e anêmicos com cara de defunto nos bares, brandindo suas caveiras suspensas por um instante da grande centrífuga eterna como a bolinha girando no ar sobre a roleta, embaixo, aguardando com seu estômago flácido de baleia pronto para triturar e moer os seus ossos virando uma pasta pardacenda, etc, etc, etc, e, de repente, galgando os quarteirões quadrados de cem metros por cem metros, como um sonho de gêometra, cada edificação me relatava uma história de dor e êxtase, surgindo de uma fenda em um céu de cartolina parda, por uma mão enluvada avulsa sem braço, e cada célula escura como carvão bruto era dotada de eletricidade brilhando e espoucando no céu como uma estrela, atravessando e arrebentando o tempo através de uma membrana translúcida fina tipo uma placenta, como um plástico viscoso enrolado na cabeça de um garoto que se suicidou (cuja infelicidade me foi contada para amenizar o sentimento impronunciável e indescritível da morte do gio que está sempre ardendo e sangrando o meu coração)
etc.