terça-feira, maio 02, 2006

[a psicologia religiosa]

O etéreo se solidificou sob o olhar cristalizador de biólogos, físicos, químicos, médicos, historiadores, antropólogos, etc. Terá a ciência esfriado o velho sol? E para quê precisamente a ciência? - se o seu efeito mais profundo é o vagar assombrado e abandonado a si próprio da humanidade. Será o raiar do homem sem consolo?
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Estamos privados do sentimento religioso. A essência do sentimento religioso independe do império da religião; tal sentimento, ou, se quiserem, a presença do divino e do sublime no coração humano, não é uma hipótese racional, não é uma idéia, aqui não influi um juízo - na ausência de um termo melhor, creio que é uma espécie de estado. O cristianismo, e todas as religiões positivas, é uma idéia. A construção de um deus é sua matéria bruta, o substrato primário, o primitivo mental em si. Temos então uma teoria! um suporte, uma tábua - no sentimento, entretanto, há qualquer coisa impenetrável.
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Como conferir a Deus a figura lamentável do homem – do ser desesperado, que tem sua felicidade coibida e ameaçada a todo momento por sua maldita condição perecível? Todos os vermes e bactérias da Terra testemunham a ultrajante condição humana! É compreensível, no entanto, que não sabendo a quem apelar, urre o homem a Deus como a um irmão, ou a um pai. Que excessiva baixeza de Deus, preocupado com toda a sorte de pequenos conflitos! Não é, todavia, sob esta sombra de Deus, repugnante e vil, que a nossa época se rendeu ao domínio do ateísmo.
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Escuta-se de bocas religiosas ser o individualismo imoderado de nossa época o principal inimigo da idéia cristã [e a idéia cristã é a idéia moral, par excellence]. Tal evento explicaria a indiferença moral que nos move, e mesmo uma certa inclinação doentia em inverter a ordem moral. Embora subsista no fundo das ações, sem entretanto ousar impor-se, como uma ratazana, a moral não é mais a lei que disciplinava e orientava os homens, a espada que pairava sob o crânio da ação: ela sobrevive apenas como prova, como retrospectiva, e como juízo tardio. A consolidação das idéias modernas, que representam a consagração da idéia moral e do instinto gregário, acima de tudo a vitória da democracia, teve um efeito demasiado ambígüo: o disfarce tornou-se excessivamente colorido - todas as cores agora merecem lugar na sua vestimenta! Tudo é passível de derrubada, destruição, adaptação, etc. A queda da Igreja, a idiossincrasia moderna no terreno da moral, não a fez desaparecer - a velha ratazana -, porém, perder profundidade, espessura - e sentido! A emergência do homem de mil peles, o ator moderno, transformou a religião em um abrigo precário, um templo de argila movediço, abandonado à mais caótica confusão. Ninguém mais está ao lado da moral - ela não tem mais lados! e está em todos os lugares - como um fantasma. Oh, Lutero! Imaginou salvar a Igreja com sua rebelião camponesa! Pobre puritanismo! Lutou como um tolo - porém, com boa consciência. Não poderia prever o cataclismo que se sucedeu. Onde florescer uma Igreja, haverá festejos! [mas é da natureza aldeã interpretar o júbilo como corrupção, libertinagem e desvio.]
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A persistência do homem religioso leva a crer que, apesar da expansão desenfreada do materialismo, houve aí uma adaptação. Como é comum entre charlatões, e todos os vendedores de idéias falsas, houve mútua fagocitose. O capitalismo e o sacerdote irmanaram-se. A relação comercial se intrometeu na religião a tal ponto, que hoje não é absurdo considerarmos as orações como um comércio divino, e fundamentarmos a nossa fé, ou a ausência dela, sob a aparência do contrato burguês - com a anuência desinteressada dos bons pastores.
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A sociedade total, realizada sob a idéia de mercado, impôs a lei da inteligibilidade. O gosto agora é medido pelo estômago do homem médio, esmiuçado e mastigado para que ele possa engoli-lo. E, por razões óbvias, pela experiência da fome, da miséria e da indigência, tal homem tem pressa em comer, e não aprendeu a ruminar. O alvo da democracia é conectar os extremos da pirâmide, reunir o senhor e o escravo tagarelando sob a mesma teia. Os homens santos, os políticos, e também os sábios, expressam-se pelo idioma universal. A regra basilar da nossa cultura é banalizar até os pensamentos mais elevados, torná-los indigentes, generalizá-los, superficializá-los. Nossos "eruditos" são magníficos sintetizadores cuja função é vulgarizar, achatar e rebaixar toda filosofia que exacerbe e ultrapasse o crânio atrofiado do homem medíocre. Eis o auge de desenvolvimento do instinto gregário e do rebanho: nada subentendido, sugerido, sutil, escondido, enigmático, ou oculto. Os mistérios são revelados em uma vitrine, sob a luz fria do luar e do anoitecer, à vista de todos, como um concerto ordinário, com gosto de enciclopédia, com sabor de jornal. Com qual fastio não deve olhar tal homem para o mundo desencantado? Com qual bocejo não deve responder a uma tal nouvelle? E, entretanto, há tanto ainda a ser penetrado! tantos céus a serem explorados!
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Não somos, por acaso, uma nova aparição da sociedade mongol, descendentes de sua brutalidade, portadores do mesmo ímpeto devastador, influxo nômade, alucinante, cavalos guiados por guerreiros tribais, tomando de assalto o estrangeiro, e tomando de assalto o que surgir pela frente, em uma vontade ilimitada de derrubar barreiras, demolindo, arruinando, conspurcando, odiando e blasfemando, horrorizados contra tudo que é perene, duradouro, permanente e firme, saqueando a certeza de nossos precursores? Seremos, além disso, um povo? E caso sejamos, somos nós, os filhos bastardos da crença, também capazes de erguer nossos próprios castelos, nossas próprias fortalezas indestrutíveis, nossos templos sólidos, desafiar o poder usurpador do Tempo? A qual remoto obscurantismo deveríamos então retornar!
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Não seria divino poder ignorar o caráter contraditório, omitir a luta permanente, esquecer-se, por um instante e com boa consciência, do combate contínuo e incessante que cada organismo trava entre si para preservar ou expandir sua própria força, todo este conflito eterno que organiza e rege, esta beligerância fundadora e polissêmica, e a disputa por comando, predomínio, preponderância e potência que move cada partícula viva? e também poder manter-se firme, não amedrontar-se ou hesitar diante da queda, da ruína, do declínio e da decomposição, interpretar serenamente o ocaso e o crescimento, reconciliando-os, unindo-os, irmanando-os como parte do plano? e poder enxergar nas profundezas um reino justo, ver uma razão e um sentido para a desgraça, para a catástrofe e para o crime; sentir-se amado e protegido de forma incondicional, sem sofrer com o frio, com o desprezo e com a indiferença? Não deveríamos, todos os dias, orar ou até mesmo cantar em agradecimento, alegrarmo-nos, e, perdidamente, dançar em frenesi, por uma tal dádiva? Ah, se o nosso crente possuísse metade de tal confiança, valeria a mentira! E que crente temos nós? Quem é o homem contra o qual nos insurgimos? É o beato confinado em igrejas frias, fedendo a formol, sofrendo de reumatismo, amaldiçoando a vida e injuriando a natureza; o pálido e anêmico portador do grande desprezo! espalhando sua fumaça de incenso na relva verde: o defumador de corações! E, no entanto, aos olhos biônicos da ciência, aos nossos deuses dissecadores de rãs, são homens idênticos, os dois têm a mesma mente estreita, são míopes e igualmente obtusos. Suponhamos, por curiosidade, que tais olhos efetivamente vêem a verdade: nada repugna mais o espírito científico de nossa época do que a segurança, a certeza, a convicção, o grau de resistência, o doce conforto e, suponhamos outra vez, a ignorância satisfeita de tal fé: ao contrário, tudo deve ser pesado em sua balança, posto em cheque, criticado e diminuído. A revolução darwiniana que elevou e celebrizou o macaco, que contemplou maliciosamente a ascensão histórica das massas, o triunfo organizado dos medíocres, mergulhando o homem no desespero e na angústia, impulsiona, como uma surdina, abafada e camufladamente, a humilhação daquele homem criado à imagem e semelhança de Deus; captura-o como um animal através de iscas, subterfúgios, alçapões, chamariscos, ratoeiras, armadilhas. A ciência! Os dialéticos! Quanta superstição ainda existe arraigada em seus corações! Não será a verdade a sua superstição, sua idiotia permitida, sua fé imbecil, sua necessária ilusão?
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Não vos parece cômico nossos filhos tardios do pitagorismo [os mais admirados crentes entre nós] almejando provar a existência de Deus pela matemática, pela física qüântica, sustentando teses e criando teologias baseados na regulação do universo, na complexidade dos mecanismos primitivos, no grande geômetra do cosmos, na maquinaria astronômica, na perfeição do arranjo biológico, no protozoário primordial, no caldeirão químico, no anencéfalo, no deformado; enxergando Deus em cada causa explicada pelo homem, desvendada, descoberta, intuída, depositando desconfiança ao poder plástico do aleatório, duvidando da conformação acidental das coisas, com sua metafísica da grande consciência, da intencionalidade, da racionalidade, excluindo tudo aquilo que não se enquadra nos seus procedimentos especulativos, que não pode ser reduzido e resumido em sua matéria mental, com o preconceito antigo que via na matemática a perfeição, uma linguagem celestial, uma simbologia superior? E por que tal ligeireza para encontrar-se com o criador? Não é a pressa a pior inimiga da boa ciência? E, se o homem do subsolo estiver correto quanto à aritmética ser meramente um arranjo e que 2x2=4 é uma sentença de morte, um muro, e não a fórmula da divindade, uma luz de Apolo, por que tal vontade de logo chegar ao fim de nosso enredo? Seria, talvez, por assombro e medo, pelo horror interno à estreiteza e provisoriedade de nossas teorias, pela condição precária de nossas verdades, continuamente reformadas, rejeitadas, dispensadas? É tão inacreditável que o homem veja precisamente nisto, nesta exatidão de relógio, uma marca do criador, uma assinatura, como uma permissão para ser esquematizado, interpretado e explicado por nossas regras fictícias e inaturais, que são metáforas da natureza, transposições, representações, signos - quão debilitada é uma tal fé! No fundo, também o cientista busca consolo, inércia e entorpecimento. O impulso democrítico, enfastiado de arrasar e derrubar, com o estômago cheio de saques e espólios, mira seu leme para o mar liso e calmo - cansado do mar crespo! -, vai descansar no azul profundo da crença. O monopólio da força, detido pelos grandes negadores, que agora expressa-se como crítica, tem de ser tomado e surrupiado por nós, aves de rapina, os obscuros adoradores do desconhecido e aventureiros do amanhã, para que venham então os grandes afirmadores!
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Nossa maldição é ter nascido num século no qual é impossível sonhar – senão onde estariam, então, os nossos profetas? Há pouco mais de dois mil anos, o que é um intervalo insignificante diante da imensidão do Tempo, e que traz um alívio ao nosso tédio febril, mesmo os homens mais desprezíveis, e pertencentes às escalas mais baixas da sociedade, podiam formular suas alucinações com alguma convicção, com alguma esperança, sedimentados e loucos sobre um chão d’água na crença em algum Livro maravilhoso e derradeiro, enquanto hoje, para nós, todas as portas estão fechadas, confinados, com os ossos espremidos, na casca primitiva de nossos desejos. Quem hoje teria a coragem de ordenar: “levanta-te e anda!”? Nossos paralíticos estão perdidos não porque precisam de pernas: eles precisam de fé! Não nos falta unicamente coragem e bravura, é certo; sobretudo, somos incapazes de flutuar como loucos, de vaguear como mendigos errantes à beira do precipício do Novo. O espírito moderno carece daquele sentimento artístico diante da vida, daquela confiança interior transbordante, daquele delírio despótico que percorre o artista ante o destino, ante a sorte dos acontecimentos, ante todas coisas ao seu redor e, mesmo sem possuir, pode crer firmemente boiar no ar, acima da própria morte: sua crença predomina sobre sua composição biológica, pesa mais do que a verdade – e, em decorrência disto, o artista sempre está a um passo de mergulhar em Deus, porque a sua fé em si mesmo é, no fundo, um artigo religioso.
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O homem médio sempre raciocinou de forma demasiado bruta, rangente e pesada; julga, por haver florescido tantas religiões, e estas haverem originado tantos crentes, existir necessariamente um fundo de verdade na religião. O povo tem seu critério basicamente fundado sobre o efeito quantitativo, e raramente examina o que se apresenta diante de seus olhos com a frieza necessária; e assim, diante dos milagres, dobra-se sem opor a menor resistência, como faz também com as obras extraordinárias de seus profetas. Se uma horda de crentes loucos estiver disposta a oferecer seu sangue para atestar a veracidade de uma proposição milagrosa, o homem comum imediatamente se colocará a seu lado, esforçando-se ao máximo para a propagação do Mistério, irrompendo como bárbaros pelo interior dos templos [e há sempre uma necessidade do oculto nas sociedades religiosas]. O Mistério, assim como a Arte nas sociedades pagãs, vivifica uma sociedade religiosa envelhecida, pois quando o império da doutrina enrijece uma cultura, e a história e a tradição prevalecem sobre os elementos dinâmicos, o véu da ilusão, ardendo da fonte fervorosa do engano, é absolutamente necessário, fecundo e estimulante, exatamente como nos casos em que a Arte, quando o domínio do político congela o ânimo criativo, lembra aos homens a necessidade de renovar e se expandir – é assim, desta forma, que os fanáticos são artistas e libertinos, num grau popular e cômico.
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Os pregadores saíram-se melhor do que os artistas ao provarem suas verdades. A mentira bem alimentada é mais robusta do que a verdade precária [temporária, hipotética, inconclusa, incompleta, refutável]: ela sabe impressionar o homem - e, com isto, o engrandece. Cremos ainda de bom grado nas histórias cujas testemunhas se fazem degolar. Quanto haverá de bravura e integridade no moribundo engolido pelas chamas? Quanto restará de coragem e de verdade no doente sufocado pela corda?... entretanto não são comoventes estes doentes em êxtase elevando os seus cantos aos céus, implorando piedade e ternura com os corações sangrentos, percorridos por um rio fervilhante de fé em seus altos de sacrifício? como trocá-los pelos nervos frouxos de nossos artistas?
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Os nossos séculos têm também as suas próprias migrações religiosas. Os mórmons, por exemplo, se constituem na mais nova forma de pregadores ambulantes. De todas as partes da América, jovens crentes se espalham pelo mundo para divulgar a verdade de sua fé cristã. A disciplina egípcia de sua crença fecunda o solo por onde passa, e o empenho destes servos tem feito germinar, sob todos os climas, os mais ricos templos. A piedosa administração dos superiores, aliada à rígida organização de suas missões de fé, entretanto, não é tão essencial quanto o grau de fé delirante que inflama os corações destes jovens religiosos. Um casal deles é suficiente para fazer multiplicar em cem vezes a sua fé: são como ratos; e, como ratos, onde se instalam tem princípio uma deterioração, e algo de podre infecta a atmosfera em que respiram. Se exibissem a mesma disciplina a respeito do prazer, como exibem em relação à renúncia [embora a tolerância à riqueza material], teríamos rapidamente uma civilização de epicuristas, pois então encontrariam ouvidos flácidos às suas vozes sedutoras; porém, as rédeas que agora nos prendem são apertadas pelos laços cegos do prazer, de modo que nós, homens modernos, vagamos incertos com a língua de fora.
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Quem uma vez considerou o homem de perto, atenta e isoladamente sob uma luz solar, sabe o quanto é debilitada sua ciência e restrito o seu campo de visão. Alguém que haja se dedicado à análise correta e meticulosa do homem, e que tente provar a idéia de Cristo no homem por um estudo moral, incansável e isento de pré-julgamentos, inevitavelmente se decepcionará. Nas sociedades onde imperou uma cultura artística, um tal conhecimento do homem jamais vigorou. O florescimento desta ciência glacial, que se estabelece nas profundezas do homem, é impossível onde estão fundados os templos da Arte; ali, onde prevalece uma arquitetura equilibrada da natureza, há calor para abrigar o homem e brisa suave para protegê-lo e amenizá-lo das chamas do excesso. Os cientistas, nestas sociedades, sempre foram considerados demônios marginais, párias relegados ao escárnio e aos quais se deveria manter preservado, ou mesmo privado do contato. Seus experimentos em relação ao homem permaneceram periféricos e ocultos naquele concerto engenhoso e cintilante erguido sobre a pedra primordial da Arte. Em determinadas épocas, sem dúvida, devemos pesquisar e ir a fundo para evoluir no conhecimento da fisiologia e da moralidade do homem para que se evite que, semelhantemente a um balão muito cheio, estouremos à menor oscilação do ambiente. A manutenção da espécie humana e também o fortalecimento do indivíduo são de tal forma complexos, que exigem de nós a máxima atenção e o cumprimento rigoroso de uma série de normas estritas que proporcionem a harmonia adequada; porém, justamente quando tais regras nos parecem nebulosas, nos momentos em que somos arrastados como que por uma correnteza de dúvida, assolados pela tempestade, insurgem-se aqueles retumbantes estados de exceção no qual brilha uma única figura, luminosa e incandescente, cercada pela imensa penumbra que se estendeu diante de nosso juízo, então estamos mais aptos, mais flexíveis e vulneráveis, ao sentimento religioso ou à frigidez científica, a ponto de agarrarmo-nos nessa primeira embarcação maravilhosa, estupefatos por ela resistir enquanto boiamos vacilantes e sem rumo compreensível.
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Como certas plantas, as religiões florescem somente em terrenos propícios ao seu crescimento, e cada homem é um desses pedaços de terra, em cada criatura se desenvolve um micro-universo, e não raramente tais criaturas podem adotar muitas religiões durante o curso de suas vidas e até mesmo nelas coexistirem duas ou mais inclinações religiosas opostas, como se o ser do homem fosse verdadeiramente um campo de batalhas; e a paz temporária, com o predomínio de um pensamento religioso, por exemplo, constitui um cristão ou um budista, enquanto uma paz duradoura e ampla, e nem por isso não tensa, não vacilante, que abranja a totalidade do homem, forma os santos - os santos são antes precisamente aqueles a quem é necessário colocar-se à prova. É tão impossível transplantar uma orquídea para o deserto quanto converter um ateu; assim como não é dado a um homem apreciar Rembrandt, uma vez que não desfrute da visão. Um ateu só se converterá quando propriamente, em seu íntimo, já não for um ateu, e nisso não influem a persuasão do sacerdote ou as descobertas científicas; para compreender uma tal modificação é necessário observar com paciência as transformações neste solo, e como a natureza ali trabalha, imperceptível e constantemente, gerando lentas mutações; ver em um microscópio a pré-história de nossos pensamentos conscientes. É preciso desconfiar das rápidas conversões! - no domínio religioso, a férrea mão do costume não se rende ligeiramente sem dissimular: uma tal pele de cordeiro, para o calmo explorador de entranhas, sempre impressionará por sua aparência de enxerto, por sua artificial superação sobre si própria, por sua inescrupulosa boa consciência ao enganar e falsear sua natureza. Quando, assombrados por um milagre, cremos ver tais homens saltar de um lado ao outro do abismo - antes que se lhes construíssem a ponte! -, não somos iludidos só pela limitação de nosso conhecimento, por nossos preconceitos ou superstições, mas sobretudo pela utilidade de tais prestígios, por uma dura e inflexível necessidade de sortilégios. A raiz do erro fundamental de Schopenhauer, enternecido por haver a humanidade recorrido ao remédio das religiões desde o amanhecer do Tempo, presumir existir no homem algo como um impulso primitivo à religião, por um cansaço iluminista, por estar habituado ao convívio com homens fracos e medrosos, foi julgar ser impossível o tipo forte, o exemplar preparado para as mais duras missões, para os submundos sem Deus, onde em tais profundezas, o homem comum não alcança com sua ridícula vara de pescar.
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Um fato surpreendente em nossa época, e mesmo talvez anti-natural, é a inexistência daquela antiga equação, que sobreviveu até a expansão do cristianismo, a qual separava para cada povo uma religião própria, e em que cada cidadão identificava-se unicamente com os deuses de sua cidade. Esta equação que perdurou até o declínio do paganismo, e que o ímpeto de Roma já havia antes afrouxado com seu império babélico panteísta, permitia que o seu templo conservasse-se intacto mesmo contra uma calamidade de alta intensidade, contra invasões e contra guerras. A Grécia antiga assistiu à construção destes templos despretensiosos e resistentes como fortalezas [por uma certa fatalidade artística na criação], enquanto hoje prevalece a enorme vaca híbrida da religião. Agora existem também inúmeros templos – mas somente como ilusão de ótica! A velha Roma é ainda quem governa os nossos contemporâneos, sobretudo através da inoculação venenosa da moral em nossas concepções políticas [Paris, Washington ou Londres são satélites periféricos do Vaticano]. Quem olhar diretamente nos olhos de nossas personalidades políticas atuais, e também souber afinar suficientemente os seus ouvidos, perceberá que a raposa moral está viva, bem viva...
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Que dois homens sejam capazes de uma mesma idéia sobre as coisas é uma suposição firmada em observações muito grosseiras. Não possuímos uma só prova que nos confirme tal conjectura. Evidentemente dois homens podem chegar a um acordo sobre as coisas, e podem entrar em consenso, por exemplo, sobre o deslocamento de um cavalo. Em último grau, entretanto, jamais poderemos deduzir que a descrição do movimento, segundo estes dois mesmos homens, coincidirá, ou que ambos tratem do mesmo cavalo, e que não fazem, cada um por si, uma idéia particular do cavalo. Tais suposições, como o consenso artificial sobre as coisas, são fundamentais para a saudável manutenção do convívio social – não é por isso, todavia, que devem corresponder integralmente à verdade. Foi a manutenção desta distância equilibrada entre duas entidades, este respeito mútuo pelo qual o individual é preservado [e o sentimento profundo é avaliado nas profundezas], e a comunidade restrita é solidificada, que mantiveram por um milênio acesas as chamas da antiga fé grega, sua separação e guerra sigilosa. Com isto, quero afirmar que a linguagem é a base de toda moral.
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Imagine-se um homem que pudesse analisar a existência de um ponto fora do tempo, sentado em cima de uma Lua de onde medisse a validade absoluta de todas as ações humanas, como se pudesse desembaraçar o fio de Ariadne: não suspiraria ele, enfim, desconsolado, compassivo com o próprio homem, desolado pela inutilidade final de todos os esforços? Este homem, regressando de sua tribuna imparcial, e sem aqueles binóculos divinos, está necessariamente destinado a considerar o resultado de toda a sua contemplação como nulo; tudo aos seus olhos parece em vão, como que retornando ao ralo inicial. Sim, pois a morte engole todas as coisas! E se nada escapa à ruína, como então fornecer, estabelecer, ou apreender um conhecimento sólido das coisas; ou pior, se tudo retorna, se todo princípio, em última instância, é inválido e a morte se constitui na única verdade constante, cobrindo as duas extremidades da corda da existência, por que erigir qualquer monumento duradouro? Todos nós, e também todas as coisas, dançamos uma única e mesma música fundamental; cantamos, sem o saber, o hino eterno da morte e com ele embalamos o nosso sono! Mas se a morte é uma verdade tão regular, é porque a vida, o sopro primitivo, é o seu par simétrico: e nisto consiste todo o jogo exuberante do vir-a-ser. Compreenda-se aquele lamento indizível de nosso habitante lunar, quando, à noite, na véspera de seus sonhos, ora ao Criador em desalento: “Ó, Criador, que fizestes todas as coisas, e que proporcionalmente desmancha também todas elas: por que me deste tal entendimento precário e superficial sobre o Ser; por que oitenta e não mil anos, ou então menos, apenas cinco anos para atingir o fundo de meu alambique; por que este curso cego e não outro qualquer?”.
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Se ficasse claro, por um só instante no mundo, quais os propósitos mais profundos de um único órgão do homem, como o seu pé, por exemplo – porque os pés também têm o seu nível de pensamento -, a humanidade não resistiria! Todos os homens se lançariam uns contra os outros numa terrível carnificina. Teríamos, talvez, alcançado a profundeza – e não é assim que nos espera a Vida!
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O sentimento profundo da religião consiste na crença inabalável de que, sob os mais mórbidos e obscuros impulsos do homem, e debaixo de sua carcaça de lobo, sobreviva uma chama constante e estável de luz divina; que existe, malgrado as rebeliões episódicas do homem, e não obstante os cursos furiosos e esporádicos das intempéries naturais, um plano perfeitamente elaborado, simples e terno, mantido sob o cuidado e a sabedoria eterna da divindade.