sexta-feira, outubro 17, 2008

[o fanatismo]

com muitas razões nobres e princípios sagrados adornamos a prática do assassinato em todos os tempos. a história da verdade é uma longa sucessão de homicídios e rituais de trucidamento. enquanto as gerações se sucedem, aumenta excepcionalmente o rastro de sangue. a arquitetura macabra de cemitério, de túmulos e tumbas corroídas, é a culminância e consumação da história. é muito comum, ao longo da história, surpreendermo-nos, da língua de nossos ídolos, ofensas como queimem, bruxas, no fogo demoníaco do fundo do inferno!; ordálio a vós, falsos cientistas!; guilhotina aos traidores do povo!; apedrejamento em praça pública para sacerdotes do diabo! difamação! difamação!... e tais ofendidos não raramente constituem uma nova casta de homens faróis, uma estirpe que servirá de lume à geração que aguarda na semente. suspeito de todos os grandes humilhados - se um homem vê a necessidade de provar a verdade amarrando-se em uma corda, aí já há muito de questionável, de intenções secretas, de astúcia subterrânea - embora esteja normalmente pronto a segui-los por suas trilhas fechadas e a subir com eles suas montanhas inverossímeis - talvez pelo prazer existente nas trilhas fechadas e no ar das montanhas: jamais pela verdade mesma. só os que os seguem saberão que lagos gélidos e belos jazem debaixo da névoa cinzenta que cobre os vales - é preciso tirintar de frio para enxergar a verdade! seus sermões inflamados são como um pequeno orifício onde atrás se acumulam ocultas muitas maravilhas - existem olhos para tais prodígios? sobraram narizes sadios para suportar tais fendas? e, se puder compor uma fábula a partir disso, digo que não é necessário, e tampouco sábio, impressionar-se com os grandes vultos, com as grandes sombras ou grandes explosões de estrelas na noite. para nós, ainda vale aquela antiga divisa grega, surgida sobre o vacilante alçapão da dúvida, que exprimia a verdadeira educação para a filosofia: nil admirari. isto deve estar escrito à nossa porta quando saírmos de casa.

[engana-se quem vê na morte o eterno cambiar de homens no tempo. a história da morte é o enredo invisível sangrento da dizimação de idéias - de embriões mentais! isto é uma luta contra um tipo de aborto que valeria a defesa. mas é isto mesmo: é aqui a natureza - sempre! - que reina. para cada expressão, para cada ninharia do destino no vento ser percebida, resvalada, notada, para cada soluçar do espírito se fazer ouvir, uma incontável - inexprimível, inconcebível, vertiginosa! - série de possibilidades são mortas sendo destiladas no útero, como uma guerra prévia na porta do que intuímos ser o acontecer. tudo - coisas da qual jamais se ouvirá falar! - ocorre, ocorreu e ocorrerá movido por uma filigrana imperceptível que sopra o universo (pra onde?! pra quê droga de fim?!), sobre a qual não podemos nos referir sem utilizar aspas. boiamos em um mundo de fantasmas forjados pela nossa arte incorrigível de generalizar. não existe nada que não tenha ultrapassado a grande vagina do Tempo. no entanto, o que é este maldito soprar?! será possível que não desabemos na crença?! não é verdade então que, em círculos, retornamos sempre ao pó?!]