sábado, maio 30, 2009

[rosário infantil]

(num sonho iluminado) com os olhos semicerrados pelo estreito túnel, a passarela que une a ilha ao resto do continente, de onde se podia inalar merda e sentir o cheiro do oceano, lendo nos lados meio triste os enigmas e diagramas regurgitados no muro, as exortações excitadas estéreis e ingênuas à revolução social impossível, as trêmulas e desesperadas e ridículas declarações de amor (caquéticas!), e tudo mais um pouco sem esmero, etc., toda esta rebeldia ingênua e suicida da juventude – e romântica! –; e onde é impossível não desejar cair no oceano como um alfinete e desaparecer nas profundezas, inundado de água por todos os poros, e tentar, lá embaixo, ver os rostos de todos os entes queridos que viraram pó e dos fantasmas do passado que nos mordem a alma com seus dentes de chumbo, e falar com eles num idioma feito de bolhas e gestos lentos estourando contra o turbilhão de ondas submarinas, um balbuciar mímico morto no silêncio em meio ao caos espectral, e dizer tudo o que devíamos ter dito alto enquanto ainda estavam vivos e respirando, e recitar um tomo inteiro de poesias desesperadas que estão ardendo confinadas nos nossos cérebros, e jogar pra fora num ruído inaudível todo o lixo degradável e podre que está nos comendo como um câncer, com um grito tonitruante e potente como um dínamo estrelado que vai morrer no silêncio puro, um grito que está enterrado como uma medula seca em nossos ossos, que não liberta, porém, alivia e esfria um pouco o caldeirão borbulhante e insuportável do nosso vazio, forjando uma frase perfeita atrás de outra, vê-las explodindo e se chocando contra o papel como uma bola de fogo, destampando o cérebro debaixo da sombra de uma nuvem cinzenta e fria, e ver a terra devorando e engolindo os arranha-céus com sua garganta sagrada, e o vento devastando os monumentos e estátuas e símbolos arcaicos da nossa civilização espiritualmente atrofiada e mórbida, etc., uma história própria que parecesse digna de ser escrita e conhecida, lida, incorporada, repetida, copiada, espelhada, refletida, por todos os homens e por todos os animais e vermes rastejantes que oscitam sob o sol, suprimindo toda a suspeita sobre o caráter horrendo e a fealdade do mundo, uma idéia que está caindo no esgoto; e descortinar a barreira de ferro que nos impede de dar o próximo passo pra frente, e levar esta mensagem ao mais recôndito buraco, repartir o pão com os huguenotes, os persas, os sumérios, os amonitas, os eleatas (etc.), em todas as épocas, uma foda transtemporal entre os povos, escrever na luz azul o surgimento de uma palavra, o fim de uma era de entorpecimento, o levantar da cama do século XX(I), o banho santo de um vulcão furioso, como um rio de sêmen vivificante, fazendo ressoar como música no ar aquela matéria ígnea morta e inerte, preguiçosa e lânguida como barro no fundo do ser, jorrando como um gêiser essa porra seca da mente, e andando com os pés cheios de sangue sobre o chão nevado, fissurando e derretendo a camada de gelo fino que se alonga como um lago cristalizado no meio do deserto, e o sonho de ser um homem ilustre escoando pela privada como um cocô obsoleto, fluindo, desaparecendo, deslizando para dentro da Criação, como se estivesse se fundindo ao plano, à natureza, etc. e a ísis surgiria de dentro do crânio de um arcanjo exibindo seu torso desnudo e serpenteando seus braços como um deus indiano içado do Ganges esparramando amor sobre a terra, borrifando jovialidade e sarcasmo de dentro dos seus pulmões, como quando eu fecho os olhos bêbado sentado no chão cheirando flores, e o gio cantando tristemente o kaddish em cima de um túmulo sórdido (o calor indescritível subindo dos esquifes repletos de ossos esquecidos) - e cimento velho rachado e fosco -, com arbustos sujos da altura de um homem, saltitando nas lápides, lamentando os irmãos e indigentes perdidos em manicômios, sofrendo choques elétricos, amarrados por tiras de couro em leitos deprimentes, doentes, caídos em desgraça, derrotados, murmurando para o teto no topo de seus cárceres um sopro de clemência, de serenidade, uma pausa na máquina de vomitar fatos, tudo isto para poder contemplar a obra imóvel e eterna que paira na consciência do Buda, e vendo o leo arrancar do seu ânus fumegante um poema latino remoto (com seu hálito de vinho barato adquirido a duras penas com seu ordenado miserável de guardião dos livros) discorrendo sobre nossa ruína moral, nossa desordem política, a decadência de nossa arte, e nossas profecias e sonhos impuros virando excrementos no tempo, soterrados nus na torrente dos fatos que se sucedem e rodopiam vertiginosamente como um tipo de droga paralisante penetrando nas narinas, e mitigando o frio sentimento de perplexidade do indivíduo, só no centro da maquinaria como um pernilongo na cerveja choca, perdido no meio da fumaça das fábricas, subindo ao céu plúmbeo desmaiado do inverno, vendo a triste estrela do oriente calmamente se apagar e desaparecer ao raiar da manhã, e descendo, na sombra das aléias verdejantes, em um rio miserável que ruge e corta em dois pedaços grandes a cidade onde eu nasci, assombrando-me para sempre, e onde o joca empunhava um cajado como um pastor velho e sábio ou um dos doidos desbravadores e assassinos de civilizações meio hernán cortez, e nós o seguíamos peregrinando e roubando frutas, escalando montes cheios de terra dura que grudava nas botas só para pôr os olhos cansados no panorama pálido de inverno da nossa pobre cidade, ver os velhos esqueléticos deslizarem como formigas para o interior dos bares fedidos, como magnetismo amaldiçoado, escarrando no solo pedrinhas duras oriundas dos seus pulmões e delirando ao beberem os seus venenos para o fígado, morrendo como moscas eletrocutadas em uma luz púrpura; e, no topo gelado dos montes, víamos coelhinhos brancos como as nuvenzinhas do céu voarem e submergirem nos arbustos e se enlearem nas sebes densas soltando guinchos suaves que morriam no espaço e confluíam em espirais invisíveis ao peito de Buda, e ficávamos na névoa suspirando e esperando o orvalho cobrir as folhas ao entardecer, com a mente conectada ao cosmos contemplando o sol do crepúsculo definhar fracamente, até descermos o monte com o frio penetrando nossos ossos e o sangue congelando nas veias; e no início da noite, indo contra o vento cortante para o casarão obscuro caindo aos pedaços, onde, na soleira da porta, pelo vidro embaçado, eu enxergava mamãe exausta preparando o jantar, decifrando-a no meio do vapor quente espargido da frigideira, com os olhos brilhantes, recebendo-me de soslaio com afetuosidade e compreensão, enquanto papai cofiava o bigode negro e espesso ante um cálice de vinho, com o pensamento longe, num cômodo mal iluminado pelo lustre sujo e empoeirado – ah, prenhe de futuro! o futuro se abrindo numa torrente vertiginosa; e o único empenho que se exigia de mim, o mais difícil e crucial de todos, consistia em liberar os meus impulsos, dar asas aos meus cavalos, e fundarem, no meio desse caos, a base do comando perfeito da natureza, da profundis natura, e aguardar com paciência, como um sortilégio, o meu justo lugar na escala dos seres; afastar-me, de todos os modos, de subordinar o meu destino, de apagar os meus dotes, de sufocar os meus anseios, em nome de qualquer idéia, de qualquer instituição, de qualquer homem: eu só obedeceria ao que a natureza ditasse como um X guiado pelo cheiro. e, na noite profunda, titia tomada pelo câncer, ofegando e murchando, e nós prostrados ao pé do seu leito, orando e rogando na penumbra para que fosse poupada do sofrimento e vivesse em paz, com os olhos fundos e o cenho franzido, invocando a clemência mais profunda, a piedade mais doce e sincera que um coração poderá conceber. em vão! deus é uma calopsita defecando no sofá; é um viciado apertando um baseado à meia luz – vibrando o monocórdio drama da aniquilação suprema com seus dentes amarelos: pobre homem, com a boca repleta de espuma, rodando como um cão ao redor do próprio rabo, caindo na desgraça, entoando só o urro dos moribundos.