sexta-feira, novembro 04, 2005

[tentativa de autoconhecimento]

Estou no verão de meu quinto ano em Floripa. Ainda não pude compreender a razão para um afastamento tão definitivo. O passado tornou-se um ruído inaudível e incompreensível; tenho sido uma câmara de isolamento acústico, surdo a todas as coisas que não dizem respeito ao presente.
Como podem perceber, tornei-me um erudito, um intelectual – embora eu pense ser um artista. Quanto ao resto, tenho sido o mesmo bêbado de sempre. Tenho tentado inutilmente me desvincular do alcoolismo; suportei quarenta dias completos sem experimentar uma só gota de álcool, sabe-se lá Deus se para o bem ou para o mal. No período de sobriedade, tive a impressão de que o homem é capaz de qualquer coisa, e que qualquer um pode, a seu modo, tornar-se uma espécie de Jesus Cristo - se bem que felizmente as pessoas têm encontrado outros caminhos e se tornado Joãos e Marias...
Agora desembestei a ponto de me considerar um artista consumado, um escritor. Joguei todas as coisas para o alto mais uma vez e estou cogitando seriamente a hipótese de não me tornar um professor de História, embora essa seja uma carta que eu guarde na manga.
Há também, entretanto, a possibilidade de me transformar em um santo. Peregrinar pela Índia, ou por qualquer confim oriental, é minha última idéia fixa, tão insistente como qualquer necessidade física – como a fome ou a vontade de cagar, por exemplo. Acho que é um retorno à espiritualidade da infância, ainda que não esteja certo de que este seja o termo correto.
Tenho pressentido que algo grande está para acontecer. Pode ser mesmo que uma natureza profética esteja emergindo, embora eu desconsidere ainda o teor dos vaticínios.
Estou prestes a explodir. Tenho a sensação desconfortável de que estou para parir um monstro terrível, que debaixo da carcaça delgada e serena agita-se um piromaníaco, um louco incendiário com uma chama na mão e sangue nos olhos.
Para encurtar, sendo o mais sincero e honesto possível, sou um gênio - ou sou completamente louco e retardado.
Fevereiro de 2005.

Jamais imaginei poder regressar: o fato, entretanto, é que o útero primitivo exerce um estranho e incompreensível magnetismo. A permanência em Floripa se tornou absolutamente insustentável. A despedida da cidade ocorreu sob tempestades e sucessivos e monótonos dias chuvosos. Todo o ambiente que me circundava convergiu inexplicavelmente ao aspecto sombrio e nebuloso que minha alma assumiu, de forma que eu me fundi à paisagem até o desaparecimento total de qualquer substância que indicasse uma individualidade viva e pulsante. Lembro-me descendo as ladeiras sob a chuva incessante, grossa e constante, correndo e saltando sobre enormes poças d'água, chegando em casa totalmente molhado. A casa sempre apresentava um fedor de cachorro insuportável. Em raros momentos, enquanto fitava as luzes brandas da cidade se acenderem lá embaixo, este cheiro se mesclava ao suave vapor que subia da rua que invadia a casa pela janela. Eu não agüentava mais. Entoei um prolongado réquiem de indizível sofrimento e parti.
A ilusão de pertencer ao seleto grupo dos gênios se dissipou totalmente. No fundo, não passo de um selvagem. Houve um tempo em que imolava um carneiro por dia ao desregramento. Somente o equilíbrio hoje agita o meu ser mais profundo, com uma ânsia inextinguível pelo ponto médio. Eu sou um destes homens que se perderam na vida pelo sonho da cultura; que preferiram tornar-se extravagantes nas nuvens a serem mendigos na terra – para os quais a vaidade intelectual é ainda o único grampo que os prende à terra, não obstante considerem-se, na maior parte do tempo, entes inúteis para quem obra alguma há de sossegar o espírito faminto.
As condições inóspitas entretanto não tornam a Terra um lugar inabitável. Se o firmamento exibe um interminável eclipse (que está desabando, caindo, comprimindo-me contra mim mesmo) – quem saberá se amanhã não há de sobrevir igualmente uma grande saúde! Estou sofrendo com a possibilidade de precocemente tornar-me estéril. Quando um prodígio já não sente força suficiente para a criação - quando todo o barro parece ter secado -, o homem criativo está para perecer. O presente é estreito demais. Estou aqui por obra do acaso.
Em Porto Alegre, vivo uma nova temporada de isolamento após uma grave e obscura debilidade mental. Natural que sendo os sonhos ambiciosos demais se instalassem no limiar da escuridão: porém, existe a música inconfundível que parte do centro da Terra, e de sua flauta emanam os acordes que inflamam nossa primitiva natureza quadrúpede – e vivemos!
***

Eu estrangulei o Desespero! "Morte! tens agora um adversário instruído". Que sensações incógnitas eu experimento. Para ti, Beleza, eu preparo o meu altar! Sou incapaz de terminar um só livro. Fatiguei-me de todos. Mastigo-os um pouco e logo me precipito sobre os meus próprios vermes. Adquiri um idioma próprio e exumei todos os cadáveres do passado. As palavras soam castas, puras e virgens! Com que frêmita e inaudita alegria vibra a ave ao pôr seus ovos!
Há alguns dias havia escrito profeticamente: “Decerto, a geração mais fabulosa deste início de século ficará calada, por absoluta coerência”. Mas lhe falta unicamente um guia, um homem ou uma idéia elevada. Isto é algo que escapa aos leigos, que pouco compreendem do coração dos poetas. O homem leigo imagina que o o poeta canta como caga. Espera que o poeta acomode-se e imediatamente se ponha a cantar, como se as melodias surgissem abruptamente do movimento de seus músculos ou do seu intestino...
Acima de todos está Rimbaud! Não especialmente por ser o mais verdadeiro entre todos, mas o mais cruelmente sacrificado. Creio que sua (auto)mutilação guarda um mistério sobrenatural, a medida exata de uma fronteira espiritual em que se transita entre dois tipos de vida, e igualmente entre dois tipos de morte. Jamais poderemos concluir se o seu destino foi um sucumbir ou um ascender, sobrou-nos meramente como certeza que, não importa a direção pela qual percorreu sua escada, atingiu o fundo, e que uma parte dele se despedaçou todas as vezes que se encostou às bordas – como deve ocorrer com todo homem que tiver persistência e bravura suficientes para olhar nos olhos do Inaudito.
Rimbaud, como Nietzsche, encarnou sua obra. Personalidades completas, intactas e íntegras, como as deles, não exibem a dualidade aparente entre interior e exterior. Exatamente por serem pura exterioridade, talvez sejam tão caros à Civilização – os cavaleiros prematuros de um futuro Apocalipse. A magnitude de suas obras, reconhecidamente sublimes, e a precariedade e insustentabilidade de suas vidas, próprias de dois demônios marginais, sem aquela oposição diametral em que se divorciam o centro e a periferia do Ser, em que não existem propriamente máscaras, mas uma severa, coerente e radical justaposição de corpo e alma, exibem o horror de uma condição ultrajante – de certa forma, o ser completo e íntegro expia um sofrimento universal, é a superfície de penitência da humanidade trapaceada, urrando um hino primitivo e fundamental: o mesmo canto com que deve ter sonhado Lúcifer caindo do Céu...
***

O grande poeta nunca exprime uma irreconciliável subjetividade, porém, o estrato subjacente e a matéria primordial da qual são constituídos todos os homens, proporcionando um sentimento elevado e superior quanto à natureza humana. Um escritor original, apesar da atmosfera de impenetrabilidade, é sempre um intermediário; escrever não é uma prática de incomunicabilidade – é o seu instinto de profeta, entretanto, que é obscuro quanto a seus vaticínios. Não existe um método infalível de profetizar, nem o profeta é o proprietário individual de suas premonições. Ele é percorrido por uma inspiração sem freios - e se escreve em versos ou em prosa, se é um poeta ou um romancista, é uma divisão absolutamente improfícua e irrelevante que, de resto, não explica nada.
Deposito todas as minhas derradeiras esperanças no gênio e considero ainda a Arte como um artigo de fé – são minhas “sombras de Buda”. Estou convicto, como os meus contemporâneos, de que Rafael não é tão útil quanto uma bota; preferiria entretanto viver descalço, contanto que Rafael houvesse pintado, como afinal pintou. Em nossa época, todos aqueles exemplares perfeitos são reputados supérfluos; segundo meu ponto de vista, sofremos de uma iconoclastia terrivelmente desregrada. Que se pode fazer? Somos modernos, conseqüentemente somos enfermos...
Novembro 2005

Um comentário:

Anônimo disse...

Meu Carissimo Daniel, li seu texto e como havia dito que escreveria algo pra você nesse findi aí vai uma tentativa... não sou muito boa em comentar textos (e nem acho que precises que comentem os teus), mas de qualquer forma, aqui estou (uma baita de uma metida).
bom, talvez eu faça mais perguntas que um comentário...
sobre cada um ser, ao seu modo um Jesus Cristo, concordo mas por que colocaste "felizmente" as pessoas tem se tornado Joãos e Marias? em que sentido esse felizmente? será que aceitar a condição de joão e maria não seria uma forma de comodismo?
por que você busca tanto o equilibrio? a "normalidade" da nossa sociedade me parece muito mais desiquilibrada que qualquer tentativa de fuga da mesma... toda a "normalidade" me assusta... sobre resistir ao suicidio...sim deveras existe essa música do centro da terra...ou a última coisa que pandora deixou dentro da sua caixa... bom, já sobre a Arte (fim do texto) o celso também defende uma filosofia ligada a ela, eu não sei até que ponto concordo com essa teoria, não sei... às vezes me sinto culpada demais para pensar na "arte"... talvez seja "moderna" (prática)demais...hahaha (acho que não)... sei lá Daniel, desculpa por esse "monstrinho" aí que eu escrevi.. como disse não sou muito boa nisso... posso dizer que gostei muito do seu texto, gosto da maneira como escreves, um verdadeiro artista!! beijão