quarta-feira, novembro 09, 2005

[a flauta mágica - observações musicais]

A música africana parece jorrar de um centro primitivo da terra. A freqüência insistente dos tambores demonstra um som grave, um rufar ansioso – é como a música eterna da humanidade à espera da partida, como os cavalos que antes de correr aguardam o açoite do jóquei. As melodias africanas compõem uma junção finalmente redentora após a proliferação e consagração das formas individuais. Sua sonoridade vibra tão intensamente como se o coração de toda a humanidade, condensado num único e mesmo coração indivisível, pulsasse direto de uma gruta básica, fundamental e primitiva; como se todos os nossos ancestrais cantassem juntos num ruído só, unidos em coro, e emitissem uma mensagem essencial cifrada em termos absolutamente originais, exprimindo uma oitava nota musical ainda incompreensível para o nosso entendimento, mas que ainda assim nos provoca, é por nós “entendida”; compreendida ao nível dos poros, conforme uma linguagem radicalmente sensualista – é “incorporada”; entretanto, que continua intraduzível para o nosso idioma atual.
Tudo parece se desenrolar no alvorecer. A peça completa se prolonga apenas até o meio-dia da História, como se a África nunca houvesse conhecido a noite...

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Mas pode acontecer que tudo isto seja meramente um preconceito; que o negro, como os africanos em geral, não constitui o arquétipo fundamental da humanidade. Hoje, de acordo com nossa ciência atual, demonstrou-se ser improvável que exista uma identidade primeira. Nossos estudos históricos são unânimes em negar essa igualdade primordial. A elegia de um princípio uniforme, em que prevaleceu a equidade mais absoluta, talvez não passe de uma quimera que mantém o homem africano escravizado à origem – inerte no estado inicial onde supostamente permaneceu estacionado como testemunho cabal do passado. Os africanos são os pais de quem desejamos esquecer. Consideramos a África o continente materno, impondo-lhe uma condição em que se esgota toda sua criatividade posterior. Pois o antigo é imediatamente associado à maternidade, e igualmente à morte! Nosso canto europeu expira seus influxos produtivos, e o homem africano é uma semente apenas por não compartilhar da beleza da estrutura pronta, aprimorada e bela da Civilização. Agora homenageamos nossa descendência africana para extinguir a dor que os imputamos. O europeu deseja abolir do povo africano os sentimentos diabólicos que lhe disseminou; quer extinguir o pecado que inflama seu ser. A brutal dizimação do povo africano é o dilema edipiano do homem civilizado – é a vergonha de Adão de nossa civilização cristã...

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A música japonesa traz suaves recordações da infância. Os sons agudos, não por acaso, são geralmente identificados com a infância. A exacerbada profusão de tilintar de sinos, característica constante das composições orientais (mas especialmente japonesas), recorda em mim uma inocência perdida. Oculta-se nos pulmões do cantor a ilusão do regresso. Essa natureza poética da música japonesa, entretanto, não a impede de conter em si um compasso cronometrado e uma geometria mecânica das notas com a precisão absoluta de engrenagens. Sua melodia exprime um extravagante diálogo com as paredes, a fronteira polar de um isolamento precoce, como se a canção fosse jogada contra um bloco de concreto, causando um ricochete muito particular. E a impressão é de que não as cantam pessoas de carne e osso, mas bonecas de porcelana, ou estátuas animadas – resumidamente é uma cantiga de seres feitos de gelo abordando temas pueris ou questões triviais da existência.
As cordas dos instrumentos soam semelhantemente a cercas de arame farpado sendo dedilhadas. O corpo parece vergar-se ao contato das cordas. Cada movimento, cada toque é como um golpe profundo de acupuntura, apertando uma parte ínfima do corpo, mergulhando profundamente em alguma região do corpo sobre a qual não pairava ainda qualquer conceito, qualquer noção que anteriormente existisse ou que fosse tão sensível e essencial. A música exprime uma atmosfera clara, completamente alva, em que todas as dúvidas são dissipadas. A sensação mais comum é de uma paz indescritível na alma, de uma mística acomodação zen. Somos transportados aos distantes locais da infância, desfrutando com a mente purificada a atmosfera libertadora das crianças.
Esse universo mítico, porém, é ameaçado com a interrupção abrupta dos tambores. A gravidade das pancadas suscita surpreendentes terrores. Os aparentes deslizes na ordem harmônica do mundo simbolizam uma súbita revolução da natureza. Semelhante ao efeito posterior à grande catástrofe, estende-se sobre os nossos sentidos um repentino e funesto clima, simultaneamente sombrio e melancólico. Paira acima de nós o tenebroso e milenar espetáculo da calamidade. A contemplação silenciosa dos escombros revela a terrível visão de quem sobrevive ao flagelo. A voz sussurra dolorosamente a perda das raízes com um murmúrio cortante; sente-se um amargo perecimento do passado sob a aparência da comunidade, do esforço coletivo para erguer colunas sólidas e duradouras sobre o chão do tempo, agora em ruínas. O som grave e profundo dos tambores cava um abismo sob os pés dos homens; suprimindo radicalmente, e de um único golpe, o que possuem de certo e verdadeiro. A expressão, para isto, torna desnecessário o conhecimento do idioma. Todo o homem há de entender – pois o tremor da voz comunica mais que o próprio significado das palavras...

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Uma linguagem imediata entre os homens! É a linguagem universal da Morte... A sublimação do prazer é ainda um sonho embrionário dos homens – ninguém teve até agora a audácia suficiente para encarar de frente a Vida, contrariamente ao que fizeram os sacerdotes com a Morte. A música nos embalou demasiadamente no sono da Morte, faltam por enquanto as notas peculiares que nos embalarão na Vida...

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Música irlandesa – uma alegre cantoria de camponeses deslizando por longas e estreitas estradas de pedra, contornados por um vasto oceano de copas verdes sob um céu outonal do fim da tarde. O crepúsculo declinando lenta e pausadamente sobre suas cabeças. As cabeleiras ruivas e louras esvoaçando ao ritmo e ímpeto da brisa morna. Os irlandeses seguem dançando contentes, desprezando completamente a lei da gravidade, saltitando e flutuando sobre o caminho sinuoso; totalmente ignorantes quanto ao destino. Estão festejando! Celebram a chegada da colheita; e, por conseguinte, abençoam a ordem estática e benfazeja da natureza.
Estou convicto de que a humanidade viveria muito mais feliz, como é desejável, em um estado de quase completa ignorância – que o saber, no fim das contas, torna o homem carrancudo e que, por fim, morre tão inválido quanto um inseto. Mas a estes irlandeses tal morte é desconhecida! Os casais circulam de braços dados em gancho, envoltos na densa névoa do olvido, libertos de toda a melancolia. Há um prenúncio divino de que a qualquer instante todos possam se fundir em uma unidade suprema. O enorme coração irlandês palpita azafamado, sem perder, no entanto, sua cadência singular, respeitando sincronicamente uma certa regularidade dos batimentos...
Mas alguém os conduz. Não é uma procissão com rumo aleatório. A peregrinação se dirige embriagada a um local sagrado. O flauteado ao fundo indica vagamente o caminho a ser percorrido pelos ouvintes bêbados. O cortejo é escoltado por um flautista, por um iniciado, que os convida a seguir a canção exultante. O flautista cumpre a missão de levar com segurança os dançarinos a uma dimensão incógnita – mas estranhamente não paira aquela faminta curiosidade fáustica que acompanha o mistério. Seu resultado, todos o sabem, é indefinível – que alguns creiam, e que outros duvidem, é absolutamente compreensível.

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A marcha de repente cessa substituída por uma calma e serena espera pelo crescimento das formas naturais, pelo desenvolvimento dos campos e o efeito dos cuidados agrícolas com as plantações. O florescer, assim como o definhamento, abrange a universalidade das coisas, e espera-se, com ansiosa apreensão, a recompensa de todo o esforço, de todo o martírio e sacrifício dedicados à labuta de perpetuar a espécie. O homem deposita toda a sua fé na esperança de obter a permissão de continuar subsistindo, por seu amor incondicional ao sofrimento – que não escapa a uma investigação psicológica mais detalhada.
Paulatinamente os tambores lançam-se em homenagem fervorosa à fertilidade dos solos, e igualmente à fertilidade das donzelas. A sôfrega e insistente batida, a pancada muda e seca é como a representação do ato sexual em si, que é violento e bruto, mas que é apaziguado e ludibriado pelos poderes de sedução e amansamento que emanam dos outros instrumentos. Os sons estridentes e angelicais duelam com a constância grave dos tambores. As composições expressam uma necessidade cíclica em tensão, mas que, por fim, naturalmente, abençoa a agressão.

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Eis que surge uma ópera matrimonial! Sente-se na carne a despedida melancólica. É uma passagem cerimonial e triste do núcleo da família à sociedade. Um vínculo sólido e consistente se rompe, como se a cauda familiar fosse amputada. A transição assemelha-se à alteração das estações do ano: a primavera familiar dissolve-se no inverno indiferente e constante da sociedade civil, onde cada um é um estranho absoluto e impessoal. A voz aqui parte de uma fonte gutural, descobrindo um núcleo anteriormente camuflado, um centro escondido que apenas se insinuava conforme a intensidade das tempestades, que também assolam as famílias.

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Mas isto pode se configurar meramente como notas folclóricas, pobres e diletantes. Eu mesmo tenho diversas objeções a tais reflexões, que mormente são absolutamente improfícuas e fúteis. O que aconteceria, entretanto, caso se tratassem de observações a respeito de Wagner ou de Brahms? Certamente a tradução seria mais penosa, uma vez que o material me é muito mais escasso, e pouco sedimentado pelos séculos. Porém, parece-me ser essencial que se faça da música uma construção sólida e perene, que se escreva no firmamento as impressões derivadas de seu canto sublime – em direção sempre ao império da Arte!...

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