terça-feira, janeiro 19, 2010

doente carrancudo caminhando cabisbaixo como se o queixo fosse uma bola de bilhar de chumbo reluzindo em um beco frio e solitário sob uma nuvem noturna cinzenta diáfana se dissipando em direção ao sul, e cada carro é uma faísca ondulando como corrente elétrica, relampejando e engolindo a estrada como uma mandíbula enorme, vendo deprimido a velha e triste moradia de um amigo onde, na infância tenra e doce, brincamos com jogos de tabuleiro sobre o piso da sala abaulado, sentindo o cheiro de mofo da madeira podre e molhada exalando das paredes, e o estômago embrulhado com o vômito balouçando em golfadas no vazio com o abominável odor e os jatos sibilantes de fumaça que partiam de um velho e decadente fogão à lenha meio caído, tenebroso, no fundo da cozinha decrépita e nauseabunda empurrando o teto baixo para o alto, e a mãe dele, uma velha gorda muito desengonçada e com um nariz inchado e gordo que lhe parecia ter sido jogado à face como um grande cocô de muar, nos dirigindo caretas réprobas nojentas, risíveis que dava vontade de explodir em uma gargalhada supersônica de fazer voar e sumir as moscas que esfregavam suas patinhas tortas sobre a casca de um enorme queijo roquefort dormindo em cima de um relógio verde que nem musgo tiquetaqueante vertiginoso e inverossímil, e pensar que esse meu amigo faleceu não muito tempo depois disso fazendo sua mãe torcer o grande nariz em prantos como uma torneira cartilaginosa, quando seu caminhão furioso tombou e rolou para dentro do poço eterno, igual a uma tarde quente, em uma primavera rósea e santa, em que caiu nosso carrinho de picolés no abismo íngreme da vila operária que era como a garganta de satã, fazendo sons tétricos e melancólicos como milhares de homens agonizando presos à gosma elástica e ranhenta de satã, degustando picolés incríveis que nunca mais existirão e indo vender os que restaram mais deteriorados e indegustáveis deles que só o louco e besta ubíqua do tobias poderia mesmo comprar, tirando dos bolsos de feltro cada níquel fodido que seu velho pai, bêbado-feliz e ciclópico velho caçador a la mahatma ghandi de avezinhas amestradas, havia espremido de seu surrado e sujo bolso com aquele olhar úmido, delirante e santo, que só os pais têm; e agora eu estava verdadeiramente amuado e caído como um anjo, pesando uma tonelada invisível, vendo tudo meio embaciado como numa viseira de escafandro, ouvindo um murmúrio blorgh & blrurgh ribombando e distantes bolhas maleáveis como gelatina saltitando no vazio, como uma esponja-cristal voadora mas submarina, e cada ridícula pedra levantada naquela cidade só me falava de morte e de dissolução, porque cada pedrinha foi minha quando criança, e elas não foram só coisas minhas, coisas que eu podia agarrar com as mãos e quando quisesse arremessá-las fora, tudo era eu, tudo era um fragmento e extensão sagrada da minha infinitesimal essência de aranha que era a mesma de deus; lembrando das manhãs de invernos congelantes, enquanto ía com o pulmão pleno de ar pra escola, passando na frente da casa dele, numa calçada cheia de tijolos esfumaçados lisos como sabão molhado, soltando baforadas de vapor que subiam pro céu cinzento se dispersando e esvoaçando como em um sonho, e ali na frente, no chão, por conta da poeira de gelo, era possível deslizar e patinar em cima dele, e ver o sol pálido se levantando bem na minha cara rompendo o nevoeiro pelo meio, abrindo um imenso buraco no centro pustulento do meu fígado como uma grande lanterna iluminando o subterrâneo da alma cheia como um pão, e tudo ao redor sendo esvaziado do crânio de deus como uma tragada de shisa profunda. ah, e quanto mais eu poderia cantar com essa boca de sapo! inundando de lama essas reminiscências fosforescentes como algas verdes e fosforescentes tremulando em vagalhões nas cristas tristes e soturnas das ondas do oceano, nessas noites cuspidas vivas pelo grande vento e que morrem em um lamento sorrateiro, em um uivo silencioso, e que aparecem refletidas nas lentes de uns óculos inesquecíveis que se apagaram para sempre quando eu era só uma criança; e um homem meio sorumbático com uns olhos cinzas e gélidos apoiado no espaldar desprezível da janela afundada numa luz azul fraquinha acompanha receoso e literalmente borrado o fluído de lesma pensante que desliza e emana como gás pelos meus ouvidos e se funde com o ar denso flutuante soprado como uma flauta através de uma fissura no chão rachado, ávido e insaciável, se abrindo sob os pés e exibindo pra fora os seus dentes escarlates sangrentos que durante eras abocanham homens, plantas, aranhas, elfos, arranha-céus, e tudo o mais, e que para nada vão permitir remissão, para nada concederão trégua, com sua máquina devoradora de mastigar coisas e idéias, pondo fim e esmagando o desfilar oco e desolador de milhares de gerações perdidas, e que arremessará num imenso cesto de lixo, depois de mastigá-los como chicletes, esses supostos anjos esqueléticos e anêmicos com cara de defunto nos bares, brandindo suas caveiras suspensas por um instante da grande centrífuga eterna como a bolinha girando no ar sobre a roleta, embaixo, aguardando com seu estômago flácido de baleia pronto para triturar e moer os seus ossos virando uma pasta pardacenda, etc, etc, etc, e, de repente, galgando os quarteirões quadrados de cem metros por cem metros, como um sonho de gêometra, cada edificação me relatava uma história de dor e êxtase, surgindo de uma fenda em um céu de cartolina parda, por uma mão enluvada avulsa sem braço, e cada célula escura como carvão bruto era dotada de eletricidade brilhando e espoucando no céu como uma estrela, atravessando e arrebentando o tempo através de uma membrana translúcida fina tipo uma placenta, como um plástico viscoso enrolado na cabeça de um garoto que se suicidou (cuja infelicidade me foi contada para amenizar o sentimento impronunciável e indescritível da morte do gio que está sempre ardendo e sangrando o meu coração)
etc.

Um comentário:

Sandro Kobol Fornazari disse...

Pois é, Daniel, você conseguiu, a despeito do que você próprio pense sobre esse acontecimento estrondoso. Eis que temos o primeiro capítulo. Há três mortes ali, esse é o novelo a ser desenrolado. Com seus fios, dá pra erguer uma arquitetura de aranha (a aranha de Espinosa, que você cita) e descompor sua própria morte.